in loco
Os novos ventos que sopram de Minas
por Eduardo Valente

No último dia 9 de novembro, a Associação Curta Minas (braço mineiro da ABD – Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas) lançou em Belo Horizonte uma nova fornada de produções daquele estado no formato curto. Fruto do II Prêmio Estímulo de Minas Gerais, esta leva de trabalhos representa o resultado daquela que talvez seja a mais bem sucedida articulação entre uma associação de classe, uma instância governamental (Governo do Estado) e uma empresa privada (a Telemig Celular), indicando um caminho, mais do que importante, quase exemplar a ser estudado por outros ramos da própria ABD nas suas negociações em âmbito estadual e/ou municipal. Afinal, o curta é ao mesmo tempo o “patinho feio” do financiamento cinematográfico (pela sua pequena visibilidade) e o grande gargalo onde se poderia exercitar mais cineastas com maior freqüência (em recentes concursos nacionais tínhamos mais de 900 concorrentes para 20, 30 premiados). Num meio de financiamento público estrangulado em todas as instâncias, como é o cultural, não parece lógico forçar uma briga apenas por verbas diretas estatais (que sempre serão insuficientes ante a demanda) nem entregar o curta ao “mercado” (que não se interessa por ele, posto que não é “produto preferencial”). Assim, o formato do prêmio, que força o contato e interação entre as instâncias (privadas, pública, produtiva) parece especialmente bem resolvido.

No conjunto dos sete trabalhos exibidos (quatro tiveram sua produção bancada pelo prêmio, enquanto outros três foram premiados para sua finalização) passeou-se da ficção mais clássica ao documentário, passando pelo experimental e os formatos híbridos entre as partes – que, como já foi notado aqui mesmo na Cinética marcam algum dos principais trabalhos mineiros recentes. O resultado dos filmes mais do que confirmou nosso diagnóstico de então sobre os principais nomes do cinema mineiro atual: entre os sete trabalhos, de longe os mais consistentes foram aqueles apresentados pelo realizador Carlos Magno (Igreja Revolucionária dos Corações Amargurados), em sua estréia em 35mm depois de uma consolidada produção de vídeo; e por três realizadores do coletivo audiovisual Teia (Trecho, de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, que passa no Festival de Brasília deste ano; e Outono, de Pablo Lobato).

De todos, o responsável pelo maior choque estético foi mesmo o filme de Carlos Magno. Se o circuito de seleção dos festivais brasileiros não tiver enlouquecido completamente (o que é duvidoso, no momento), Igreja Revolucionária dos Corações Amargurados deve ser um dos mais importantes trabalhos a circular o Brasil em 2007. Nele, Carlos Magno opera uma verdadeira explosão das suas preocupações político-estéticas anteriormente vistas  (abordada aqui na revista por Cezar Migliorin) – sendo que explosão soa especialmente adequado visto ser uma tradução possível do termo técnico (blow-up) que é usado para descrever a passagem da imagem de vídeo para o suporte do 35mm. Pois no blow-up das imagens de Carlos Magno, há uma combinação de efeito estético e transe hipnótico conseguido pela mescla da montagem com a própria temática do filme (os cultos de uma igreja fictícia encenada como real pelos “atores”) onde a potência resultante é daquelas raramente vistas no cinema brasileiro de curta. Se há neste trabalho ecos de um Godard maoísta (especialmente no uso das cores) ou de um Sganzerla, há igualmente a incorporação de todo um conceito de performance-instalação perfeitamente transpostos para a linguagem cinematográfica. A obra de Carlos Magno é resultado claro de uma sensibilidade pós-moderna (consciente, pois, do que veio antes e estabeleceu os cânones – inclusive da vanguarda), mas também soa igualmente “pré” alguma coisa que ainda virá a ser o cinema. Com isso, e por todas as operações de choque e combinação que realiza, o filme de Carlos Magno resulta num objeto e tanto, que certamente ainda voltará a ser muito discutido nestas “páginas”.

Já sobre os últimos trabalhos da Teia, vale segurar os diagnósticos mais precisos, pois são filmes que pedem seguidas fruições – o que, em si mesmo, representa um diferencial e tanto (e Outono, em especial, na sua sutileza de composição, foi bastante prejudicado pela projeção ruim dos filmes – em especial, no som – e pela sua posição dentro da programação). O interessante a notar neste primeiro momento é como um quase parece “responder” ao outro, dentro do que é a produção da Teia como um todo. Pois, se o filme de Helvécio e Clarissa problematiza diretamente um certo esgotamento formal das ferramentas mais comuns aos trabalhos do grupo até aqui (uso das texturas do Super8 e digital; alternância entre os enquadramentos gerais e de detalhes extremos; contraposições e ligações entre figuras humanas e paisagens; narrativas poéticas acompanhando trajetos; poder evocativo e poético na mistura dos registros documental, ficcional e experimental), o filme de Pablo pode ser considerado um primeiro experimento saído do grupo no campo da ficção propriamente dita (embora Silêncio, de Sérgio Borges, também possa ser visto assim, inegavelmente trabalha num registro poético-experimental muito mais acentuado), sem com isso abandonar várias das características listadas. Especialmente se visto como primeiro passo, ele soa ainda mais misterioso e enigmático. De uma forma ou de outra, o que os dois filmes deixam claro é que acompanhar os trajetos traçados pelos realizadores da Teia (que podem ser melhor conhecidos no artigo sobre o grupo) é tarefa essencial para quem quer estar em dia com o audiovisual mineiro/brasileiro (por que não mundial?).

Os outros quatro filmes vistos parecem ainda tatear em busca de uma estética, de uma forma que os melhor resolvesse. Entre estes os exemplos mais promissores foram os da misteriosa empostação (visual e de atuação), bastante estudada, porém inegavelmente incompleta e interrompida, da estréia na direção da produtora Márcia Valadares (Clara); e o bem-sucedido trabalho de atores, quase desperdiçado numa inconsistente construção visual e de espaços pelo mau uso da câmera digital em Era Uma Vez... (de Gisele Werneck, Byron O’Neill e Guilherme Reis). Os outros dois filmes (o documentário Pela Noite e a ficção Arremate), na sua aparente ausência de ambições (“documentar um espaço/universo”; “contar uma história/piada”) patinaram no seu domínio (na melhor das hipóteses, parcial) das ferramentas narrativas e estéticas de seus respectivos campos. Adicionam pouco, se algo, ao que se produz melhor em outros meios – essencialmente televisivos.

Feita esta avaliação rápida dos trabalhos, é importante notar que, sendo esta edição a segunda de um prêmio criado em 1999, não podemos ainda celebrar de todo o andamento do projeto sem saber qual será sua efetiva continuidade – afinal, um dos maiores males do Brasil é o desperdício de boas idéias pelo abandono da sua continuidade, que seria realmente sua efetiva utilidade. Um exemplo bem claro disso é que ali foram lançados também os ganhadores do Prêmio Telemig Celular Curta o Minuto: uma iniciativa bastante original deste prêmio, que premiou realizadores para fazerem filmes de um minuto com objetivo final de exibição (e também, na maioria, a partir de captação na mesma mídia) através do download para celulares.

Mais do que um “oportunismo” (a patrocinadora ser uma empresa da área) ou uma “inovação vazia”, o que se coloca em questão com este formato de prêmio e exibição é um dos grades desafios que os curta-metragistas enfrentam hoje (sem ainda total compreensão dos seus efeitos – estéticos e financeiros): estão surgindo, pela primeira vez na história do audiovisual, mídias (internet, celulares) que preferencialmente exibem trabalhos de duração curta. É claro que lutar pela exibição dos curtas em cinema (como faz a ABD Nacional) possui sentido artístico e estético definidos, mas trata-se de uma luta que inegavelmente se coloca na contramão do fluxo mundial e histórico do formato de exibição comercial de filmes (todo ele centrado no formato do longa-metragem). Manter essa luta pode ter sua importância estratégica, porém parece igualmente (ou mais) urgente pensar estratégias e ferramentas estéticas que dêem conta deste novo campo que se abre cada vez mais, e que será ocupado com conteúdo de alguma forma e produzido por alguém. Neste sentido é que o prêmio dado para as produções voltadas para esta mídia precisa ser continuado: produzir dentro deste formato pede uma série de estratégias novas que, a julgar pelos dez trabalhos premiados neste ano, nem sempre os realizadores já conseguem levar em conta. Afinal, quais seriam as especificidades estéticas e narrativas deste formato? A questão continua em aberto, e só a continuidade de pesquisas e trabalhos na área dará conta de tateá-la.

Paradoxalmente, o próprio prêmio, neste lançamento, não conseguiu solucionar um dos principais pontos: o formato de exibição. Os trabalhos digitais para celular foram exibidos em vídeo no telão dos cinemas – o que é uma contradição óbvia. É inegável que isso não só afetou nossa avaliação dos trabalhos (que deveriam ser vistos em formato pequeno), como principalmente criou uma igualdade desigual na contraposição em uma mesma tela entre filmes finalizados em 35mm e trabalhos pensados para o celular. Não é por acaso que aquele que pareceu o mais bem-sucedido dos pequenos filmes (Um Dia Meio Parado, de André de Novais Oliveira), justamente por ter pensado bastante seu formato, estava deslocado naquela telona que tornava o efeito visual principal do filme (estátuas que falam) um tanto mais mambembe na definição da tela grande. Não se trata de um defeito do trabalho e sim de uma clara inadequação de formatos – para uma próxima edição, caberia aos organizadores disponibilizar o material através da mídia para a qual este foi pensado. Se não for assim, fica a impressão/efeito de que o material não foi pensado para esta mídia, e neste caso porque criar um diferencial?


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