in loco - cobertura dos festivais
Alguns rumos: o presente e o futuro
O curta-metragem na 7a CineOP
por Pedro Henrique Ferreira

Pouco tempo atrás, a Cinética publicou uma pauta dedicada a alguns curtas-metragens que figuravam nos principais festivais de cinema do país. O foco era dedicar um texto a cada um destes filmes sem a pretensão de articulá-los entre si, concentrando-se em extrair as qualidades daqueles que causaram as impressões mais fortes nos redatores. Mas numa cobertura mais extensa como a da 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto, o que busco não é tanto encontrar estes vislumbres quanto dar forma a um panorama (ou panoramas), agrupando filmes de pequena duração - nem sempre aqueles que criaram as sensações mais intensas - que se articulem e lancem luz sobre um contexto mais amplo. A abordagem feita na pauta anterior e esta práxis de lançar um olhar sobre o todo costumam ser exercícios complementares. O singular dá sentido ao geral, e o geral dá sentido ao singular.

Dito isto, não é difícil notar a herança que um bom filão da produção curta-metragista dos últimos anos tem de um cinema contemporâneo produzido no exterior. Os ecos são notáveis nas temáticas (a juventude, a cultura digital, o distanciamento do mundo) e formas plásticas. Mas a aplicabilidade destas influências descortinam outras conotações numa geração brasileira. O tema se liga a uma juventude de classe média urbana que parece não encontrar um projeto para si mesmo. Em nosso país, pode-se dizer que esta camada estaria doente de falta de norteamento ou de insegurança? Vivemos mesmo entre as utopias do passado e um presente monótono, entre a revolta contra a burguesia e a adesão a ela?

Na revisão de Pra Frente Brasil, numa sessão da retrospectiva de Roberto Farias na Mostra, ficaram evidentes as raízes do processo que levou a classe média brasileira a este lugar estranho, politicamente inócuo. Em plena década de 70, o personagem de Antônio Fagundes não quer nem Deus, nem o Diabo. Vive felizmente entre os símbolos da alienação da classe média - cerveja, samba e futebol - afirmando-se um apolítico. O que observamos no filme é o processo em que, por amor/vingança (e somente por estas motivações), primeiro ao irmão, e em seguida à namorada, o homem toma um lado na guerra. Deste filme realizado em 1982 até esta leva de curtas-metragens, o que é que mudou? É mesmo somente a falta de sentimento e/ou descrença? O que é que faz esta atual mescla de adesão e repulsa aos mesmos elementos de outrora?

Tais temas não são especialmente novos na produção nacional. Mas nesta nova leva de curtas-metragens, alguns deles exibidos pela primeira vez, era flagrante uma inclinação muito curiosa, um extremismo em relação aos próprios princípios que indicam uma forma de exaustão. Talvez um sinal de que um ciclo esteja se completando é exacerbação de todas as premissas básicas que o constituem e levam tantos seus sentimentos, de excitação e melancolia, quanto as formas plásticas pelas quais vem operando a um ponto de limite. O que fica visível na cobertura da 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto é o apontamento de que, aqui e acolá, esta produção começa a, pelo exagero,  vislumbrar um círculo a se fechar e um retorno a uma tábula rasa.

Ao mesmo tempo, fica a certeza de que esta é apenas a primeira visão destas obras, que ainda e sempre precisam ser revistas. E que os rumos que a história toma, no mais das vezes, costumam nos surpreender.

* * *

Nos momentos finais de Elefante Invisível, de Elisa Ratts, um zumbido invade a narração de um jogo de futebol que um filho e seu pai assistem na televisão. A situação sonora é uma síntese do filme, que se utiliza de alguns signos da vida cotidiana da classe média (p.e., o futebol associado a uma ideia de alienação lúdica) para armar a trama de um rapaz em seu divórcio com o mundo. O som é a expressão de um mistério que lhe atrai ao mesmo tempo em que perturba, afastando-o das ocorrências cotidianas. A imagem, desgastada, não pode dar forma a este “além”. Só poderia fazê-lo por sonhos, como aquele do elefante narrado verbalmente no prólogo e que intitula a pequena obra. O objeto sublime não é visível. Na realidade cotidiana, é um fato sonoro. O som é a expressão do inefável que põe o homem doente em torpor, num desesperado estado de ânsia e busca numa grande rua sem semáforos. Não poderíamos dizer exatamente a mesma coisa de tantos outros filmes desta época?

Um outro curta-metragem que parece ser mais uma reiteração do que uma novidade vem de um já “veterano” do novo cinema cearense. O diretor Guto Parente repete em Dizem que os Cães Vêem Coisas um conjunto de situações que vem há tempos trabalhando, justapondo dois tipos de registro. O primeiro é a observação da tipologia de uma festa burguesa, identificando os convidados pitorescos e criando um misto de adesão e ironia àquela situação. O segundo tipo aposta em um registro sensorial do ambiente, em efeitos sonoros e visuais que deformam a percepção do mundo a um lugar de ruído. Ao mesmo tempo em que se coloca como um membro efetivo daquele lugar, o diretor se distancia em isolamento. O desespero é correlativo àquele expresso na sequência de Os Monstros em que os personagens gritam “Festa!” numa praia deserta de Fortaleza. Reverbera este sentimento contraditório que faz da festa um evento de purificação, mas que jamais fecha os olhos para o vazio por trás dela. De certa forma, seria este o estatuto no qual a classe média se encontra: uma tendência a criar um catalisador que se exaure em si mesmo a partir do grande nada que os cerca. A solução para o impasse novamente é fazer com que a arte retorne a um abstracionismo da matéria bruta, a um status de ruído que o filme metaforiza e romantiza no “olhar do cão” – representação do selvagem, que antecede e sucede a reunião burguesa, e uma baliza ao resto da sociedade.

São temas próximos de O Amor Nunca Acaba e Invisíveis. O primeiro, dirigido pelos irmãos Pretti, marca um retorno dos gêmeos às pequenas realizações do começo da carreira, que prosseguem até Rumo. Novamente, há um sonho – o de um encontro que realize a plenitude do amor – mas ele não se apresenta na vida do protagonista, encenado por Rodrigo Fischer. Aí é que está o problema: se, como dizíamos, anteriormente sobre Pra Frente Brasil, o que dá sentido político à vida de um homem é o amor ou a vingança, o que falar de um homem que não consegue encontrar ninguém para amar? De dia, fica morgado e se tapeia para despertar. À noite, frequenta festas com mulheres que logo abandona (ou o abandonam). A ânsia vem da dialética entre estes dois dados, o desespero de não ter certeza de o que fazer com seu destino, e a excitação de passar a noite expiando a melancolia. O ciclo se torna uma base para investigações cromáticas entre o vermelho e o azul, de decupagem e encenação, e outros artifícios puxados para um desbotamento/precariedade. Trata-se de um exercício rotineiro feito com o pouco que se tem às mãos, enquanto se procura a plenitude com a qual se sonha. Um sonho “que nunca acaba”. É a esta prática que se refere o título – o eterno amor de Coríntios - e também ela que rege seu tom idílico.

Já o incisivo Invisíveis, de Anderson Fregolente, aponta um estiramento do tema. Rapidamente nos vemos diante de um anúncio apocalíptico. Entediados com o vácuo existencial de suas vidas, três jovens adultos resolvem entregar-se a uma noite de bebedeira. O episódio é marcado por uma ânsia autodestrutiva. O que chama a atenção é o pessimismo drástico: num registro que simula a intimidade, vemos uma purgação por loucura fadada ao nada. Não há resquícios de leveza. Dançam num apartamento fechado, vagam pelas ruas entre prostitutas, drogas e orgias, apenas para ao final de tudo, cometerem suicídio. É uma visão intransigente mas que, mesmo em seus erros e acertos, em sua deprimente falta de perspectiva, cria algo de comovente.

Muito PrazerExcesso de vida e suicídio também têm seu quinhão em Quando Morremos a Noite. Um velho tuberculoso encontra uma jovem enérgica à procura de amor. A relação reflete duas gerações, dois corpos e duas energias, uma velha e outra nova. O mais velho toma um rumo e persiste em se curar, enquanto a mais nova, tão enérgica, termina por se suicidar e deixar um ponto de interrogação. A direção de Morotó põe muito abertamente a dramaturgia no centro de tudo, num flerte com um mise en scène à francesa que, em alguns sentidos (e até mesmo nas camadas temáticas), remete a Garrel - porém, filtrado por uma ambientação que simula a sujeira/desordem de Bukoswski. Cauteloso na sutil caracterização de seus personagens e na forma de encenação por pequenos gestos, Quando Morremos a Noite é filme de melancolia urbana, de cumplicidade na paixão e, sobretudo, de incompreensão e mistério na opção pela morte - coisas que vemos muito serem buscadas por aí, mas raras vezes serem realmente atingidas. Fixando-se na concretude dos gestos, o filme consegue não tornar seus personagens vítimas de uma simplificação geracional.

O movimento de aproximação que o prólogo de Os Mortos Vivos faz nos remete ao plano inicial de Millenium Mambo, criando uma diegese narrativa pelo texto para reconfigurá-la logo em seguida, introduzindo um novo dado imagético que a congela. Quando um menino senta no lugar de outro, a “substituição” passa a permear todo o curta de Anita Rocha da Silveira, de modo que aquelas figuras que estão presentes, ocupando determinados lugares num círculo de relações, podem imediatamente ser trocadas por outras. Numa exegese sociológica da adolescência da Zona Sul carioca, a diretora se utiliza de inúmeras táticas e estratégias de encenação para dar forma a um mundinho fechado, imóvel, que só aceita o que está do lado de fora para tomar o lugar de alguém que se vai. E este que se vai, passa a estar off-line, apartado do universo imediato do pequeno gueto juvenil. Eis o tal “morto-vivo” - num falso flerte com Ferrara, Denis, e o gênero de suspense - mais conceitual do que cinematográfico: aquele que desaparece deixando uma lacuna a ser logo preenchida por outro qualquer.

O filme exprime, assim, a relação do modelo de adolescente hype para com as formas do passado, refletida nas inúmeras imagens de animações que povoam alguns dos monumentos da cidade, ou, pelo contrário, nos monumentos pasteurizados invadindo os shopping centers. Longe do contaminatio maneirista, nos vemos diante de um esvaziamento do original para se criar, novamente, uma substituição. Como a fábula do começo, cada imagem é desligada do mundo, como a cadeira que aguarda uma nova pessoa se sentar e ocupar o lugar-qualquer de personagem – uma unidade na entropia da narrativa.

E não é descabimento o sentimento de frieza que emana de Os Mortos Vivos, pois os objetos são cambiáveis na manutenção de um arcabouço. Da disjunção entre forma e matéria, o olhar da diretora retêm somente a primeira, e em certo sentido, é aí mesmo que notamos seus maiores vícios. Ficamos com a impressão de que a tese sociológica construída a partir do mito quer se aplicar invariavelmente a qualquer ponto geográfico, o que, no fundo, diz mais das ideias do observador do que sobre o mundo. Todo o esmero de realização, a inegável sensibilidade para harmonizar um clima de mistério, se esvai na impessoalidade do discurso. Um buraco negro que o curta-metragem diagnostica e pelo qual, na mesma medida, é seduzido. Onde percebe-se o potencial de um grandíssimo filme, infelizmente terminamos com algo cativante e inofensivo, próximo de um deja vu. É o preço a se pagar por ter optado em não encarar de frente os problemas que colocou na mesa.

* * *

Não é à toa que os dois curtas-metragens mais surpreendentes de todas as sessões da 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto sejam experiências que, em vez de uma adesão ou um diagnóstico, procuram enfrentar cara-a-cara e acertar as contas com o que acontece agora. É o caso de Eu, Zumbi – Coisas de Bar, ou Passa a Régua e Traz a Conta, que se inicia com uma menina aprendendo a usar uma câmera fotográfica e um garoto encenando a si mesmo. O diretor capixaba, Alexandre S. Buck, deixa às claras as regras do jogo: uma aproximação formal ao estatuto da imagem produzida massivamente por meio de ferramentas de fácil manuseio. Mas rapidamente todo este discurso sociologizante é assaltado por um ultrarrealismo vertiginoso: um tiro disparado logo ao lado. Retrocedemos então ao começo da trama. O curioso ponto-de-partida são dois jovens entediados que resolvem fazer uma piada de mau gosto, isto é, largar nas ruas um ator fantasiado de zumbi que prepararam para um set de terror frustrado. As filmagens oficiais já terminaram, e o que vemos é um making of póstumo (e a figura do morto-vivo não é o símbolo exato do epitáfio?). A aberração chega a um boteco e um tricolor assustado dispara um tiro no ator fantasiado. Um estranho choque de realidade onde tudo se mostrava como uma dramaturgia tola.

O evento é um gatilho para que Eu, Zumbi – Coisas de Bar, ou Passa a Régua e Traz a Conta incorpore os efeitos desta prática, nas ruas, na internet ou nas redes sociais, criando um paradoxo entre sua feitura e os locais onde suas imagens adquirem sentido (afinal, por que incorporar no filme os efeitos causados fora dele?). Com êxito, percebe que extrapola as plataformas de realização e exibição tradicionais, e a forma tal qual os jovens lidam com novos espaços. A dramaturgia caminha rente a um documental, mas ficcionaliza-se com a mesma autoridade com que a juventude encena sua própria vida, rente a um tom de humor negro, mas com um leve desespero em seus intervalos, não aderindo nem a um polo e nem a outro. Lembrando um pouco algumas obras produzidas por Todd Phillips, o curta-metragem faz de uma zombaria inconsequente uma obra forte e plena de energia. E, principalmente: bota o dedo em uma ferida crucial, num ponto de limite onde câmeras digitais e o mise en scène conscientemente encenado pelos jovens não podem derrotar a imprevisibilidade e pujança de simplesmente se estar vivo, presente.

O outro destaque é Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, uma das experiências mais fortes da safra atual de curtas-metragens em sua química de ironia, desespero e vertigem. Utilizando-se de diversos formatos de captação, desde câmeras fotográficas e de celular, webcams e páginas da internet, o diretor Eduardo Kishimoto tece a trama de uma adolescente de classe média-baixa que encontra em um site pornográfico um vídeo seu. Observamos por um mosaico de pontos-de-vista a transformação desta jovem em uma personalidade pública, na medida em que sua nudez a leva a ser reconhecida nas ruas. Evidencia-se a exterioridade com que a imagem ridiculariza sua figura. O filme revela que o objeto é por elas despido de amor, vulgarizado, e o prazer da captação é um voyeurismo pornográfico de um corpo que é fragmentado, em total descaso com qualquer forma de interioridade que vem a nós como um dado perturbador. E ao mesmo tempo, sempre, sempre cômico.

A sequência final é impressionante: após ser identificada nas ruas por um pervertido, a menina perde a razão e corre desesperada. Inúmeras pessoas seguem filmando-a invariavelmente. Após se ver cercada, entra de vez na dança e tira a roupa. Seu corpo é serrilhado por inúmeros pontos de vista. Lembrando, por vezes a precisão catastrófica e violenta de um Kiyoshi Kurosawa, Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada esgarça quais são exatamente os interesses na crescente produção e difusão de imagens digitais, num mundo onde tudo está disponível. E a que espécie de demônio é que tal ethos está ligado, um demônio pelo qual se apaixonou: ao pervertido voyeur que destroça os corpos e os põe em fragmentos externos nas redes.

Julho de 2012

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