eletrônica A
cultura da revanche por Francis Vogner dos Reis
Os fatos08
de fevereiro de 2007 Em um assalto com uma arma
de brinquedo, dois assaltantes colocam pra fora de um carro Rosa Cristina Fernandes,
sua filha de 8 anos e uma amiga. Seu filho mais novo, João Hélio Fernandes, de
seis anos, fica preso ao cinto de segurança e é arrastado pelo carro roubado por
quatro bairros no Rio de Janeiro. O crime hediondo choca os brasileiros do Oiapoque
ao Chuí, à esquerda e à direita, das classes baixas às classes altas. Entre tantas
notícias abismais, os detalhes do crime tornam esse fato (e a notícia, como conseqüência)
o mais intolerável dos últimos tempos. 09
de fevereiro de 2007
Na
novela Páginas da Vida da TV Globo, três freiras se juntam para ler uma
matéria do Jornal O Globo. A manchete na primeira página diz “barbárie contra
a infância” e a matéria fala sobre o assassinato do garoto João Hélio. Elas, chocadas,
se perguntam “aonde o mundo vai parar”, choram, se sentam, rezam um Pai Nosso
e uma Ave Maria. Um fade in revela uma imagem aérea do Cristo Redentor
que é sobreposta por uma foto de João Hélio. Manoel Carlos entrega não
só o garoto nas mãos de Deus, mas sobretudo o mundo – porque como diz suas freiras,
“não sabe aonde vai parar”. 10
de fevereiro de 2007 No sábado, dia 10, com painel
da tragédia do dia 08 já montado, o assunto, as opiniões e os juízos já repercutiam
com exemplar voracidade. Com os suspeitos presos e interrogados, os jornais em
polvorosa, a Veja lançando sua edição semanal dando capa ao crime (onde pergunta
se “não vamos fazer nada?”), a turba do linchamento (essa entidade brasileira
tão tradicional) ressurge para alardear a selvageria, espumar e mostrar os dentes
para seus maiores inimigos depois dos criminosos: o pessoal dos direitos humanos,
a pastoral do menor, e todos aqueles outros que não prezam pelos “humanos direitos”,
como diria o guru da ideologia do “pau” Paulo Maluf. A redução da maioridade penal
volta a ser a pauta do dia, assim como a pena de morte, leis mais duras e as justificativas
do horror se exercitam em suas plataformas tradicionais na boca de políticos e
formadores de opinião. Em um clima de terror, nada mais típico do que relembrar
que ainda hoje existe uma demanda para a simples, desburocratizada, eficaz e milenar
lei do talião – olho por olho, dente por dente. 11
de fevereiro de 2007 Rosa Cristina Fernandes é
entrevistada pelo Fantástico. A mãe do garoto – que na sua razão e sua dor pede
por justiça – apela aos governantes para que se faça, como nos Estados Unidos,
uma distinção de leis Estado por Estado – porque segundo ela, cada lugar do Brasil
tem uma realidade diferente, portanto, as leis devem obedecer a esses contrastes.
A Rede Globo, como de costume,
transformou o assassinato de João Hélio e a dor da família Fernandes em
folhetim. Convém sempre contextualizar o “drama”, transformá-lo em tema, eleger
personagens e progressões dramáticas. O Jornal Nacional, na figura do MC Bonner
com sua indefectível voz metálica, cria uma estrutura episódica na cobertura sobre
o crime – incapaz de qualquer reflexão sobre o fato, mas tornando a notícia permeável
à dor e à torcida de quem assiste. Indignação é a palavra que esgota as matérias
e comentários do Jornal Nacional. Como nas novelas, a relação com o assunto só
se dá por vias emotivas. É a lógica de que a emoção “toma” as pessoas; a razão,
é uma opção. E a razão não vem ao caso. Como
falar de emoção, Rede Globo e “realidade brasileira” sem nos lembrarmos da novela
Páginas da Vida? Ela cumpre à risca seu papel de participar da vida nacional,
desenvolver (ou vampirizar?) temas relevantes e críticos. Que se diga: Lei do
talião do Antigo Testamento não é coisa de Manoel Carlos. No episódio do dia 09
de fevereiro ele preferiu o Novo Testamento e entregar tudo nas mãos de Cristo,
no caso do Rio de Janeiro, o Redentor. Sonia
Abrão e “a turba pede por uma cabeça”Realidade,
ficção e vampirismo não faz a cabeça só de novelistas e jornalistas, mas também
dos entertainers-jornalistas. Sonia Abrão é, sem dúvida, uma representante de
peso da categoria, até mesmo porque possui uma postura política conservadora muito
mais clara do que seus colegas de horário. Vez ou outra ela emite veredictos sobre
questões polêmicas, sobretudo quando envolve política de segurança. Quem já não
viu seus links ao vivo sobre rebeliões em presídios e Febem, em meio ao
merchandising e comentários sobre as novelas? No dia 12 de fevereiro de
2007 Sonia Abrão faria um híbrido de sua avaliação de novela com a indignação
sobre a escalada da violência, a falência da justiça penal de modo geral e o caso
do assassinato garoto João Hélio de modo mais específico. Entre
o trivial sobre a vida dos famosos, o programa vespertino da Rede TV traz neste
dia a apresentadora expondo seu ponto de vista sobre a política de segurança do
país, alardeando o caos da violência, criticando não só os criminosos, mas as
leis penais e todos os defensores de bandido do país. Como seu programa se alimenta
da vida de famosos e de outros programas (principalmente das novelas da Rede Globo),
nada mais oportuno do que juntar o útil ao agradável: Sonia Abrão encerra seu
protesto com a cena da oração das freiras pelo garoto João Hélio na novela Páginas
da Vida, como símbolo de seu sentimento de indignação sobre o triste episódio. “A
informação é uma arma”. A frase, que encerra uma contradição, foi dita no dia
12 de fevereiro por Sonia Abrão em seu heróico e indignado tom revanchista. Só
que dessa vez seu arsenal verbal não era movimentado simplesmente pelo fato do
assassinato, mas pela repercussão dele – mais especificamente pela entrevista
da mãe de João Henrique no dia anterior no Fantástico e pelo já referido episódio
de Páginas da Vida. A apresentadora falou em nome de Deus e do Brasil e
buscou na cena da oração das freiras (“aquilo é choro de verdade, choro de mulher
brasileira”, disse) um apelo à paz, ao mesmo tempo em que clamava por uma reação
das autoridades à altura da violência cometida. Enquanto
na parte inferior da tela a chamada dizia “o país inteiro pede penas mais duras
para assassinos do garoto no Rio”, a apresentadora tocava o mesmo disco da retórica
truculenta de muitos radialistas, políticos e “cidadãos de bem” – que atacava
juristas, conjurava os omissos, falava em favor da redução da maioridade penal,
conclamava o povo a realizar protestos – “ir às ruas” e ela completou “mas com
muita ordem” – e finalizava seu grito de revolta, como ela mesma disse, dizendo
“vamos atrás de quem realmente acaba com a vida”. Sonia
Abrão tem uma manifestação espalhafatosa, mas não se engane, o pior não é sua
performance. O que impressiona mesmo em A Tarde é Sua, é que o programa
se apresentou como uma síntese exemplar de todo painel criado pela mídia. É ai
que vemos hoje uma situação-limite dos meios de comunicação, porque já não há
mais muita diferença entre um tradicional discurso fascistóide, uma série de matérias
e a aparente e humanista solidariedade de uma novela. O que vale mesmo é embarcar
na notícia e fornecer subsídios a uma certa histeria coletiva, ampliando e multiplicando
essas reações em cadeia. O
vampirismo midiático em cima do crime não tem intenção alguma em arejar as idéias
em um momento em que a emoção, antes de alguma indignação, causa cegueira. Por
isso, dedica-se a explorar a dor dos pais do garoto (e não exatamente o problema
da violência), de modo transformá-la em questão nacional. A segunda questão é
a cultura da revanche. Assim, é conveniente transformar rumores em verdade, como
as muitas alusões sobre o número dos integrantes que cometeram o latrocínio, a
informação sobre um dos assaltantes dizer que o garoto arrastado pelo carro era
um “boneco de Judas” (e transformar isso em destaque), ou até mesmo, o que é mais
típico, estampar a cara do suspeito no jornal ou na televisão como sendo definitivamente
o culpado. Enfim, conseguir uma cabeça pra acalmar a multidão é o que vale – isso
enquanto se consegue grandes índices de audiência e vendas de revista. editoria@revistacinetica.com.br
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