A Culpa é do Fidel (La Faute
à Fidel!), de Julie Gavras (França/Itália, 2006)
por Fábio Andrade
O mundo é uma laranja A Culpa
é do Fidel começa com um grupo de crianças à mesa de um enorme jardim. Entre
elas está Anna (Nina Kervel), protótipo de dama que ensina seus coleguinhas a
comer frutas usando garfo e faca. Enquanto as outras crianças lutam – com a falta
de jeito típica dos primeiros anos – com os talheres, Anna se orgulha dos pedaços
perfeitamente simétricos em que fatiara sua laranja, e olha para a falta de habilidade
dos outros com um professoral desdém. Se nessa primeira seqüência a garota é professora,
a laranja é a fruta que retornará como metáfora da riqueza do mundo quando, na
segunda metade do filme, um dos amigos comunistas de seu pai (Fernando, interpretado
pelo italiano Stefano Accorsi) tenta ensiná-la os princípios do comunismo. “Algumas
pessoas querem ficar com a laranja inteira”, diz, “mas nós acreditamos que ela
deva ser repartida”. Ele parte a fruta com as mãos e oferece um dos pedaços a
Anna, que o devora sem reservas ou elegância. Esse tipo
de repetição se torna um padrão ao longo da hora e meia da estréia na ficção de
Julie Gavras, filha do grego Costa Gavras. Se o título do filme já indica o conflito
pelo qual passará a jovem protagonista, a diretora não se furta a reiterá-lo plano
após plano: assim como George Orwell escolhe animais para reduzir as questões
políticas que metaforiza em A Revolução dos Bichos a valores de convivência,
Julie Gavras toma o ponto-de-vista de uma criança para travestir uma oposição
de sistemas políticos com nomes atraentes como solidariedade, compaixão e justiça.
Mas Anna é uma garota esperta, e garotas espertas não se contentam com explicações
parciais. Para ser convencida da beleza do rumo político escolhido pelos pais
– o mesmo que a tirara de uma casa enorme, com um bonito jardim e uma criada de
quem gostava – eles precisarão de mais do que meias-palavras. Isso
não significa, porém, que essas palavras não serão sempre as mesmas. Pois A
Culpa é do Fidel logo deixa bastante claro não estar interessado em passar
da página três, mas sim de ler essas três primeiras páginas ao espectador inúmeras
vezes, garantindo o pleno entendimento de sua proposta. Não existe, portanto,
espaço para respiros, para o olhar se deter com interesse no universo de seus
personagens, para que o mundo gire determinado por qualquer coisa que não as relações
de causa e efeito: se uma amiga vai dormir na casa de Anna, esteja certo que isso
servirá narrativamente por seu estranhamento diante da educação liberal da família,
ou da comida preparada pela refugiada vietnamita que os pais da amiga decidiram
abrigar. Se Anna gosta de natação, é para sermos ensinados de que ninguém ganha
um revezamento sozinho. Se gosta de brincar de loja, é só para fazer contraponto
ao discurso dos amigos de seu pai. Esse total desinteresse
da diretora pelo universo que filma, em troca de uma preocupação obsessiva com
a mensagem de seu filme, faz de A Culpa é do Fidel uma experiência bastante
aborrecida. Pois se o universo infantil fascina muito por sua autonomia e imprevisibilidade
(basta olharmos para Estamos Bem Mesmo Sem Você – filme que divide as salas
da cidade com este A Culpa é do Fidel), essa pulsação é eliminada do filme
em nome de um raciocínio político que, embora pareça sincero, é extremamente redutor.
Em
filme onde até os contrapontos são óbvios, é incontornável a sensação de que seus
personagens não sobrevivem como mais que vozes das convicções da diretora.Em vez
de alguns minutos de Anna sem dormir pela respiração alta do irmão François (Benjamin
Feuillet – que garante os poucos sorrisos ao longo da projeção), teremos uma seqüência
inteira da garota perdida na fumaça das bombas de gás lacrimogêneo que reprimiam
a passeata em que seu pai a levara. Em vez de um pouco mais de tempo dedicado
às brincadeiras das crianças, ganharemos mais um par de piadas sobre barbudos
vermelhos. Em vez de a acompanharmos, no plano final, pela misteriosa solidão
de uma nova escola, veremos Anna ser logo convidada pelos novos colegas a brincar
em um mundo onde meninas e meninos se misturam, onde os uniformes berram em cores
que não combinam, e onde a multidão deixa de ser assustadora e se torna, de fato,
acolhedora. Se são valores blindados a quase qualquer tipo de condenação, Julie
Gavras os defende de maneira tão inverossímil e ingênua que os condena à impraticabilidade. Janeiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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