sessão cinética
Crônica
da Inocência (Comédie de l’innocence),
de Raoul Ruiz (França, 2000)
por Fábio Andrade
O
mistério transparente
À época de seu lançamento, Crônica da Inocência
foi muitas vezes subestimado como apenas mais um filme a reafirmar
a tendência do plot twist, em uma leva de finais surpresa
que havia se tornado popular com o enorme sucesso de O Sexto
Sentido, de M. Night Shyamalan, no ano anterior. O julgamento
apressado não só não faz jus ao filme, mas também surge de um
erro grosseiro de avaliação. Afinal, o que é realmente explicado
ao final de Crônica da Inocência? O que podemos apreender
de fato dessa suposta reviravolta que, segundo esta leitura, levaria
a uma conclusão definitiva? É possível, ao final, dizer alguma
coisa de absoluto sobre as personagens e os dramas do filme? Há
resolução? O filme é mais inteligente, e parece empenhado em frustrar
sistematicamente as expectativas do espectador e das personagens
que circulam o protagonista. A começar pelo título: se, à primeira
vista, ele parece encapsular uma pequena narrativa sobre a infância,
logo perceberemos que, se há um inocente (com o duplo sentido
que a palavra carrega) no filme, certamente não é o pequeno Camille
(Nils Hugon). Ao contrário: ele é o autor, o sujeito ético que
desestabiliza a ordem vigente em nome de uma intuição, de uma
voz que só ele é capaz de ouvir. Ele é um cineasta que propõe
uma intervenção direta no mundo, e que tem plena consciência das
consequências deste ato. Um artista, enfim.
Crônica da Inocência parece trabalhar no binômio kieslowskiano da personagem dividida entre
uma vivência estável e as orientações de uma voz que a interpela
(normalmente um impulso artístico), e a conduz irresistivelmente
para uma vivência inventada que parece não ser conformável à ordem
vigente. Em um texto sobre Kieslowski, Slavoj Žižek aproxima esse
“ouvir vozes” à paranoia pura e simples, mas estabelece, entre
as duas formas de interpelação, uma diferença essencial: “o sujeito
‘normalmente’ interpelado sabe que a voz que se dirige a ele ‘não
existe realmente’, que vem de dentro dele, que é uma ficção, enquanto
o paranoico acredita que a voz vem de fato do exterior”. Tanto
Camille quanto Isabella (Jeanne Balibar) sabem de onde parte este
jogo de encenação, e o praticam não por loucura, mas por acreditarem
em seu potencial balsâmico, em sua faculdade operativa (lembremos
aqui que Camille manifesta sua vontade de voltar para a casa justamente
quando seu pai some de cena, após reações repressivas por demais
gratuitas durante um almoço de aniversário e comentários desdenhosos
sobre a produção artística do garoto).
É
aí que Crônica da Inocência se revela um filme bastante
diferente daquele que, em seu lançamento, por vezes se acreditou
que ele fosse. A sinuosidade do roteiro do filme se contrapõe
à lisura dos travellings e panorâmicas conectivos (ou até
associativos) de Raoul Ruiz que, antes de estabelecer as personagens
de “exceção”, determina a casa como um organismo de funcionamento
comunitário; uma encenação que tem protagonistas, coadjuvantes
e até mesmo extracampo bem definidos (o pai). Em certa medida,
todas as personagens colaboram com a criação daquela encenação,
e todas têm vidas em tela suficientemente lacunares para suspeitarmos
de suas motivações e desejos – e é interessante como Camille passa
a chamar sua mãe pelo nome, consciente do momento exato em que
ela deixa de ser pessoa e se torna personagem. Pois ao contrário
da psicanálise, a arte não é produtora de resoluções, mas sim
de enigmas. E o enigma só pode ser completo se suas armações são
reveladas; se, ao contrário dos truques, ele realmente se dá diante
dos nossos olhos. É preciso que Alexandre realmente exista, que
Camille registre o dispositivo que inventara para sua obra de
vida, que Isabella aceite seu papel com total consciência de suas
implicações éticas, e que Ariane (Isabelle Huppert), como espectadora
ideal, também veja o nascimento daquele filme, olhando as primeiras
fitas de Camille. E, ainda assim, pouco sabemos das motivações
do artista: desconhecemos a raiz de seu desejo de trocar de família,
de mudar de nome, de trazer um morto de volta à vida. Só assim,
diante da aparente inexistência de mistério, pode haver um mistério
de fato.
Junho de 2010
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