in loco - cobertura dos festivais
Cristóvão Colombo - O Enigma (idem),
de Manoel de Oliveira (Portugal/França,
2007) por Felipe Bragança
Como
quem espera num navio
O sentido da história como
um filme de viagem: um filme de olhar e desvendar enigmas da memória que nos falha,
uma certa pulsão, um certo amor, uma certa teimosia que não se indispõe, mas cutuca,
persiste. Daí talvez o lugar em que a arte de Oliveira se coloque hoje: não há
o alarde do feito cinematográfico, não há a peripécia pela peripécia. Filmar parece
assim, tão fácil. Em Oliveira, cada vez mais, o amor ao
cinema e seu conhecimento de dispositivos de linguagem, vai se tornando uma certa
calma, e uma certa persistência ao mesmo tempo alegre e desiludida. A facilidade
com que este filme vai se dispondo na tela, a serenidade com que a beleza, o humor,
a história, a descrição verbal, a iconografia e a saudade, vão se posicionando
na tela, nos leva ao sentimento estético de um mar aberto e cheio de aventuras.
Se em Um Filme Falado, Oliveira implodia a noção
de história como apreensão civilizatória do mundo, aqui ele reverte a noção de
viagem para um lugar, antes de tudo, do coração, do afeto, da afeição terna e
instigada pelo que o cerca. Oliveira parece deixar o cinema se dar assim, facilmente,
como uma navegação em dia bom, e aí talvez neste filme isso tenha ficado muito
claro como nunca: Oliveira filma, hoje, como quem espera num navio. Como
quem navega procurando o novo sim, mas um novo que não se abrupta, que pode vir
vindo no horizonte, devagar, devagar, em meio a um grande nevoeiro que cobre a
maior cidade do mundo, suas luzes, a tal Estátua da Liberdade de “facho aceso”...
Como quem navega pelo próprio esforço, prazer e cansaço da navegação. Por isso,
Oliveira é, em si mesmo, em seu próprio corpo e voz apresentado representando,
na segunda parte do filme, o historiador-médico obcecado por Colombo/Colón: a
imagem desse ir e vir, desse buscar imagens (se não era isso que buscava Manuel
Silva, o personagem, se não era isso o que se achava Colombo, o explorador?).
A imagem apequenada do homem que sente seus amores, do homem que pergunta e insiste,
que investiga. Investigar como um ato de amor e fruto deste. Não
à toa, no reencontro com o casal de protagonistas (agora assim, tão mais velhos),
estão os momentos mais ternos, certos, exatos, divertidos, vivos, exuberantes
do filme. Olhamos para a vida procurando história, e no corpo a história se pergunta
onde está o sentido que mantém aquele casal perseguindo sua tese, sua procura.
O que o filme de Oliveira faz (sob a corruptela de investigar a origem de Colombo),
é o sentido de HISTÓRIA como uma forma amorosa de olhar. A história como uma forma
amorosa (interessada, instigada, teimosa) de se instalar no mundo. E
a forma como Oliveira se instala hoje no mundo é esse cinema assim, sem alardes
de “Terra à Vista”, sem elocubrações sonoras ou virtuosismos de uma estética para
a beleza destacada da vida. Há, e aí se reitera o tema-dramaturgia-sentido do
filme, um sentido de eternidade e imersão no mundo, tamanha a “despreocupação”,
o doce desinteresse que ele parece nutrir pela sua finalidade, a desimportância
que ele dá a ansiedade da chegada. Quer-se chegar logo aos lugares, o jovem Manul
Silva quer sempre e muito: mas cada lugar só o leva para outro lugar... Resta,
então, seguir, comentar coisa-a-coisa, olhar detalhe a detalhe, procurar de novo,
retomar, tocar, beijar na testa, ir e vir, perguntar 47 anos depois se ainda se
gosta... Rir, continuar... Navegar é preciso; viver, impreciso.
Resta-se deixar levar por esses amores, essas teimosias de vento – essas navegações
com mapas que nos caem ao colo. “Ama uma mulher e uma pedra”
– dizem do médico... Ama assim, as duas – o que está aqui e o que está além. Cinema:
O plano final (frontal) de Oliveira e sua mulher na janela da casa de Colombo,
é a imagem dessa casa-barco em que se vive. Dessa pontuação de um filme que se
constrói pequeno, com a maestria de quem precisa expressar conhecimento ou habilidades
circenses, pelo convite a uma paz que pode até incomodar, estranhar, desinteressar
quem estiver a busca ali na sala de cinema da catarse estética que lhe sublime
a vida. Para Oliveira, ele sempre disse, o cinema não substitui,
não imita, não muda, não retrata a vida – ele a comenta, visita, retorna, olha
de novo, torna a olhar, faz suas pequenas homenagens. Memória e cinema como teimosias
da vontade – e o quê mais??? ... Ah...
Colombo? Ora, ora. Colombo era português, sim (!) – devia de ser. E mesmo que
não o fosse – o era. Setembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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