in loco - cobertura dos festivais

Cristóvão Colombo - O Enigma (idem),
de Manoel de Oliveira
(Portugal/França, 2007)
por Paulo Santos Lima

A imagem é a última memória possível

O cinema de Manoel de Oliveira é, grosso modo, o das coisas concretas, certeiras, que podem ser vistas na tela exatamente como são, “palpáveis” aos olhos. Para tal, o tempo que a câmera destina aos objetos tem de ser valioso, dedicado, como se a extensão da duração do plano desse a devida premência às coisas mostradas. Semelhante a essa câmera de Oliveira é o médico Manuel Luciano da Silva, protagonista de Cristóvão Colombo – O Enigma, filme que passeia pela polêmica tese de que o descobridor da América teria nascido em Cuba, Portugal, e não em Gênova, Itália. Sendo um filme de Oliveira, há outras questões menos literais a serem versadas, mais ligadas à experiência pessoal do cineasta e o mundo de hoje, e entre eles o cinema rastreando memórias humanas.

Pois o médico e investigador Silva (nome-index de toda a nação portuguesa) ficará por cerca de 60 anos, migrando de lado a outro da costa atlântica, buscando indícios das origens lusitanas de Colombo. E o que ele terá à mão? Os esqueletos e carcaças das antigas aventuras e feitos, das réplicas de naus a estátuas e placas. E, se Colombo parece em princípio uma ausência absoluta em solo lusitano, o grande passeio de investigação e “arqueologia” de Manuel Silva torna concreta toda uma história positivista, factual, esta que privilegia os grandes marcos simbólicos de memória.

Claro que Manoel de Oliveira não está, aqui, fazendo um endosso do pensamento enciclopédico. Pelo contrário, nesse exercício “de almanaque”, o filme está a falar do seu momento, o contexto global que exige certas “medalhas” de legitimação, de se estar geopoliticamente no mundo. Assim, se Portugal, apesar de seus inúmeros feitos, perdeu seu lugar no globo, afundando em esquecimento, nada mais salutar que ir atrás daquilo que pode dar conta de toda uma memória perdida (e é a memória o que interessa a Manoel de Oliveira).

Isso alinha este Cristóvão Colombo a um punhado de outros filmes de Oliveira, mas mais especificamente a Viagem ao Princípio do Mundo e a O Filme Falado. Sobretudo no segundo, há um forte diálogo com o contexto global, novos impérios que também fabricam suas memórias em tempo real e assassinam outras. Não à toa, os resquícios de Colombo, na América, Estados Unidos, estão igualmente minguados, perdidos em canto qualquer. Há um belíssimo plano-síntese que mostra a estátua do anjo protetor dos descobridores emoldurado por um sol que vem do reflexo de um prédio de vidro, uma dessas towers norte-americanas que fazem o papel que antes era dos arcos, figueiras, estátuas, monumentos, placas comemorativas ou bulevares. E, Colombo sendo a origem da América, do Novo Mundo, do além-Europa, o colosso dos impérios recentes, com suas torres gigantes e medonhas, sombreia seu próprio passado, nega sua própria existência.

Daí o próprio Manoel de Oliveira e sua esposa, Maria Isabel, interpretarem o casal Manuel e Sílvia na maturidade. Será neste estágio soberbo da vida (pois aos quase 99 anos, Oliveira é dos maiores cineastas da atualidade) que o casal Silva descobrirá mais sobre Colombo e sobre uma ausência disseminada de memória (traduzida na mítica Escola de Sagres, apresentada no filme como um espaço geometricamente notável, belíssimo, mas oco, com seus corredores amplificando seu próprio vazio, cruz de malta símbolo lusitano vazado e tal). Mas, por outro lado, o casal, nessa altura das coisas, na vida ativa que tivera no mundo, contempla a beleza das coisas e sua própria história conjugal, com amor selando uma existência plena. Se a memória do país (e do mundo, da humanidade?) parece esquecida, a de Manoel de Oliveira, a sua própria, íntima, de cineasta e homem, continua intacta e nutrida por suas andanças pelo planeta, rodando filmes.

Ao aparecer de corpo presente na tela, Manoel de Oliveira torna valioso o seu exercício cinematográfico, que não deixa de ser sua postura existencial e política. Pois assim, sabe-se de uma certa pulverização da memória, guerras, atos medonhos e tal. Daí o cineasta, então, pegar sua câmera e continuar, altivo, seu exercício de celebração das coisas do mundo; tanto as do homem quanto as naturais (aparentemente comum, o belíssimo plano final com navio cruzando o azul marinho, dá conta disso).

Tornar célebre aquilo que parece desbotado. Na prática, castelos ou quintas, mesmo com seus índices enfraquecidos, ganham poder como imagem: porque existem na tela, aos nosso olhos, como geometrias, cores, matérias, tijolos, recortes com a paisagem. São imagens assim, de um bom gosto e equilíbrio visual incríveis, em seus típicos enquadramentos fixos em leve contra-plongée, que Manoel de Oliveira constrói toda uma memória inesquecível. Memória do cinema. Memória da vida e do homem.

Setembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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