Corpos Celestes,
de Marcos Jorge e Fernando Severo (Brasil, 2009)

por Rodrigo de Oliveira

Habitar o vazio

“E onde ficamos nós nessa imensidão toda? Somos irrelevantes. Pouco mais que nada. Muito menos que pó. Mas vocês vão se acostumar com isso”. O professor de astronomia Francisco termina assim a sua palestra num planetário, para uma platéia vista em planos próximos, sempre opostos aos planos das estrelas fabricadas no teto do lugar – uma platéia que parece enfadada no início da cusparada de números sobre a grandeza do universo e que termina se mexendo de incômodo na poltrona à medida que a conclusão do raciocínio chegue à desesperança desse punhado de frases. É assim em Corpos Celestes o tempo inteiro: nunca se trata de elucubrações filosóficas sobre o ser, mas de dados concretos sobre o inevitável do “ser nada demais”. Dados incontornavelmente negativos, mas, ainda assim, é por uma idéia de costume, de hábito, que Marcos Jorge e Fernando Severo estão jogando aqui.

A aula de astronomia se dá no momento em que o filme se biparte. É difícil chamar o começo da trama de prólogo uma vez que se passam nada menos que 35 minutos até que a infância seja ultrapassada, que Chiquinho se torne Francisco, e que Corpos Celestes finalmente introduza seus créditos de início (ou de recomeço). À infância cabe a imagem dourada e primaveril que fomos educados a admitir sempre que se fala de um flashback, e o caso é menos de ceder ao dourado que perceber que há aí no cânone clássico-narrativo uma obrigação de quadro geral que é ao mesmo tempo limitadora e incrivelmente livre – ninguém realmente se importa com o que se dá dentro desse amarelo a fórceps e, portanto, tudo pode ser construído no interior dele. Os figurinos de época estão lá, as recriações obsessivas da direção de arte pelos rótulos originais das marcas de alimento mais famosas do país, o velho tape da chegada do homem à Lua e da final da Copa de 70, e até mesmo aquele problema crônico do cinema brasileiro em filmar cena de multidão sem que ela grite “são apenas poucos figurantes mal dirigidos!”.

Fala-se muito da relação que Marcos Jorge, especialmente, tem com um certo tipo de comédia italiana dos 70 e 80 que ecoa esse ambiente interiorano da primeira parte de Corpos Celestes, mas se há uma memória forte ali é a da imagem que o nosso próprio cinema criou para esse espaço, sobretudo em alguém como Carlos Reichenbach (que, de resto, escolheu melhor a referência italiana em Zurlini, Risi e companhia, e não no Ettore Scolla de Jorge). O interior como o lugar para onde fugir, mas que nunca se apresenta como pouso realmente seguro, não como experiência do presente, nem muito menos como o passado intocável. É no interior que se definem vidas, e talvez porque lá justamente a tal multidão não seja tão evidente como na cidade, onde os dramas se vivem, no máximo, a dois, e onde, portanto, é possível enxergar melhor os corpos que, fora dali, parecem assoberbados pela massa. Em uma definição: o que se quer do interior é o vazio.

O plano-padrão da infância de Corpos Celestes é o close de um menino com os olhos para cima. Chiquinho tem uma atração natural pelo céu, pelos astros, e essa atração só se potencializa com sua aproximação ao maluco da cidade, um americano recluso e depressivo que, por acaso, tem seu pendor também para a astronomia. Boa parte do trabalho de Ricky é apontar para Chiquinho tudo aquilo que já está lá, naquele mesmo céu que ele observa diariamente, mas que o menino ainda não consegue ver exatamente. Algumas estrelas morreram há milhões de anos atrás, mas ainda é possível ver sua luz: vazio preenchido, mesmo que ilusoriamente. E o menino se especializa tanto mais na observação do infinito quanto mais se der conta da finitude do que acontece no nível do chão – e, não por acaso, a maior revelação que terá no uso do telescópio não é a vista de uma galáxia distante, mas o flagra no próprio pai traindo sua mãe com duas prostitutas.

Como com as estrelas mortas, o que Chiquinho experimenta em sua infância é sempre um brilho enganador, e ele logo será forçado a admitir a sua versão da existência como a verdade sobre as coisas. Marcos Jorge e Fernando Severo filmam tudo com a grandiloqüência que a ocasião merece, câmera lenta e lágrimas rolando no desespero do menino, grua e ópera no volume máximo para registrar o suicídio do americano. Corpos Celestes é um filme sobre a História do Mundo, não importa o quão localizada e específica a trama pareça ser. Acontece que esta é uma história que dá errado. O mundo, como a estrutura do cinema clássico, parece estar pouco se lixando para o que acontece em seu interior, desde que a norma seja respeitada, que a dimensão determinante de sua natureza seja obedecida. Especializar-se no estudo desse mundo (e desse cinema) significa admitir sua macro-força, reconhecer a irrelevância dos atores que trafegam por ele e, eventualmente, fazer como o professor Francisco sugere: acostumar-se.

O menino ecoa o homem, e traumas são carregados pela vida até que surja a chance da redenção. O amor, e só ele, é capaz de aliviar o peso existencial. E tudo o que se coloca ao redor desse núcleo está ali apenas para realçar, através de sua estupidez, o quão sérios homem e mulher são nesse caminho à sagração final (um pai estúpido, um irmão estúpido, um filho do americano igualmente estúpido). O sujeito atormentado, a mulher fatal, o alívio cômico, o perturbador potencial da harmonia do casal – tudo em Corpos Celestes se oferece a um reconhecimento imediato, a um apelo ao costume do já-visto, e se há um personagem alter-ego dos cineastas na trama é o de Ricky, o maluco visionário. Severo e Jorge apontam para o céu e gentilmente dizem que há mais para se ver ali no meio de tudo.

Mas há o que, exatamente? Justo isso, a versão descrente do costume: não são personagens disponíveis a transformações, são apenas atores-de-si-mesmo, treinados e afiados para reagir imediatamente à natureza de seus arquétipos, absolutamente autoconscientes, corpos que falam e andam, os tais corpos celestes mortos de início, mas que ainda surgem minimamente iluminados aos nossos olhos. Atrevido, Corpos Celestes devolve a um tipo de cinema popular brasileiro o passivo da inconseqüência, uma screwball comedy existencial em que o pastelão é substituído pelo verbo, a gag só existe pelo corte, e o palco não é mais o teatro de revista, os estúdios da Atlântida ou (Deus nos livre) a Zona Sul carioca, mas pura e simplesmente o universo inteiro. O sotaque fabricado do americano lunático, a escalação do ator que faz seu filho parecendo ter sido tirada de uma lista de elenco de apoio de Baywatch, a gostosa/esperta que não precisa mudar de corpo para ter algum encanto (basta só mudar de nome), o barman de olhos vampirescos iluminado de maneira ainda mais assustadora, Dalton Vigh em uma versão apenas-emburrada de seu personagem em O Clone, tudo em Corpos Celestes parece mirar nesse limite entre o exagerado e o doentio – e em seus melhores momentos, o filme se instala no lado de cá dessa balança. 

Em mais um de seus discursos pessimistas, Francisco oferece todo o vácuo existente no universo para reforçar a idéia da nossa pequenez, de que só 10% de tudo é matéria e o resto está nas mãos do impalpável, apenas para terminar com um provocante “e vocês sabem o que realmente existe?”. Ora, existe Diana/Celeste/Estela, quem quer que ela seja, interrompendo a aula justo no momento em que a pergunta é proferida. Eis a resposta de Corpos Celestes para a escrotidão adquirida de Francisco: lide com o que te parece mais verdadeiramente misterioso e sem resposta (o humano em sua dimensão mais artificial) e nós provemos o espaço ideal para esse confronto. É por isso que Severo e Jorge nunca poderiam oferecer ao protagonista aquilo que ele tão insistentemente tenta vender a seus alunos. Se há um símbolo do vazio no cinema é o branco total (retire a película de seu lugar entre o projetor e a tela, e o que se terá é branco projetado sobre branco). O preto sempre foi um sinal de preenchimento, das cartelas que traziam os diálogos inviáveis do filme mudo ao fade que sempre anuncia uma imagem substituta – e, em Corpos Celestes, o preto está em toda parte. E que este também seja o filme brasileiro que melhor soube lidar com os efeitos especiais só contribui para que o final seja ainda mais impressionante: na falta de redenção, de paz interior e acerto com o passado, na impossibilidade da mudança, que esta gente pelo menos tenha o direito de habitar o lugar por elas escolhido. A imensidão do mundo está presente até na menor de suas partículas, no pedaço de vidro quebrado de um velho telescópio. Zoom-out no universo, ali onde sentimos um prazer genuíno em sermos desimportantes, eis a idéia de inferno pessoal que Corpos Celestes tem a nos dar. E é um inferno lindo.

Janeiro de 2010

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