em primeira pessoa
Corpo, imagem, contaminação
e aventura
por Felipe Bragança
1. A narração cinematográfica aí está e se propaga, persistindo.
O que se move... se figura: ao mesmo tempo em que é não mais alinhavada
pelo que desdobra em moral representativa, mas naquilo que faz dela
o sentido próprio de novelo. A novela/novelo permanece. A imagem
mesma, em contração, não descreve o que se move: ela mesma se move,
ao que a ação do corpo-imagem se transpira na narratividade dos
eventos. O que pode um corpo-imagem? O que pode um filme?
2. Deleuze indicava
no cansaço o estado corporal por excelência de um cinema
capacitado para a apreensão do novo, do desvio. Um cansaço que
é antes de tudo uma acumulação de ações já dadas e uma possibilidade
infinita de ações ainda incertas. Circular, dar o tom, em torno
dessa contração espasmática da imagem em forma de reflexão da
ação descontraída. O corpo, sem saber, não atua como elemento
de intervenção exterior, mas como uma não-ação que se estuda como
afirmativa, dado de dispersão que é um desvio do ato solicitado.
A imagem cansada vibra em si mesma e pode, nesse desvio desobediente,
se transfigurar em ato de afirmação. Saber-se não agir, saber
se instrumentar e se fundar numa possibilidade de lacuna entre
o estímulo programado e a reação programática. Um estado de um
corpo-imagem que se desvia naquilo que renuncia.
3. A contemplação não
basta. Mas dela fica a premência da superficialidade da imagem.
Uma superfície não contraposta ao conteúdo que carrega, mas ela
mesma, presença verdadeira. O cansaço, ao contrário da tristeza,
nos leva à superfície. E nela, nessa película ensimesmada, outras
superficialidades talvez aflorem em sentidos de ação que não mais
se bastam como descrição espacial, como coletânea de momentos.
A ação que aqui se pensa é intempestiva, fora de hora, desajustada
a um percurso funcional. O corpo que narra, não faz – o corpo-imagem
é em si mesmo a sua ação narrativa, como uma modulação de sua
presença – que intervenção no mundo-imagem é possível para uma
imagem-corpo que se faça nem como instrumento nem como declamação?
4. Cinema de aventura.
Cinema-aventura. Gestos diretos que ocorrem como faíscas, peripécias
– não como reflexos condicionais de um lugar-personagem que funciona.
Talvez aqui possamos indicar dois gestos de interesse: a Raiva
(direta, abrupta e presente – que se desvia do lugar do Ódio recalcado)
e a Alegria (imediata, elétrica, positiva expansão – que se esgueira
ao desvio do happy-end con-formado) como dois pólos privilegiados
desse aventurar-se. Aventura, porém, aqui, como construção de
uma contaminação do olhar através da imagem, um gesto antes de
tudo fabular, atuado em presença como uma ética quase religiosa
da imagem, não como postulado descritivo e analítico do gesto.
E aí, talvez, se dê a diferença entre a descrição das ações como
equações sem resolução exata (o niilismo da narração fragmentada
ao passo de inutilidade) e das ações cinematográficas como, em
si mesmas, um comportamento da imagem nunca vista como canal,
mas como território político que se dá em desvio do retratismo
social ou da crônica cultural.
6. De que vale fazer
cinema se para dizer como as coisas são? Se as coisas o são, que
sejam. O que o cinema tem a ver com tudo isso? Daí a se acreditar
numa contra-prova fantasista como negação do cotidiano são outros
quinhentos... Mas mesmo que fujamos do universo da imagem alegorista,
celebratória da farsa, analítica por decalque, há algo HOJE que
esteja entre a contemplação e o frenesi adesista dos psi-antropólogos
de plantão. Entre o ato onipotente e o ato desinteressado, há
um lugar onde o corpo ainda atue no espaço e no tempo como ruptura,
invenção, ainda se desdobre como organimo contaminante e frágil?
5. Apichatpong Weerashetakul.
/João de Deus. / Madame Satã. / O tubarão-tigre de Wes
Anderson. / Santo Forte. / O Hulk de Ang Lee no deserto.
/ Picolli voltando para casa. / O Paraíso de Godard. / O solo
de guitarra na janela, de Van Sant. / A mulher que vai e volta
em Jia Zhang-ke, empurrada dezenas de vezes. / O amor quando voa
de Bressane. / Os prisioneiros das grades de ferro com a câmera
na cela. / O rosto de Eastwood. / A dança sob a chuva forte em
Shara.
7. O grande desafio
de um cinema contemporâneo que explorou o cansaço, a estagnação,
o formigamento e a fruição contemplativa ao longo dos anos 90
e início dos 00 parece ser descobrir, hoje, quais formas de ação
imagética ainda são possíveis por dentro desse esvaziamento dos
eventos, dessa rarefação da imagem-instrumento. Que formas de
transformação e animação da imagem ainda podem se dar através
de movimentos positivos, apaixonados, não mais gerados como absolutos
narrativos/ideológicos, mas como vontade superficial, orgânica
e contaminante, presentificada nos corpos e gestos imaginados
em si mesmos.
8. Como fazer um cinema
presente com tanto passado na cabeça? Um esquecimento afirmativo
e uma memória fabular podem nos ser úteis. Café Lumiére, por
fim e de começo, nos deixa livres para andar.
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