Corpo,
de Rossana Foglia e Rubens Rewald (Brasil,
2007) por Paulo Santos Lima Corpo
aberto
O primeiro plano de Corpo é de uma clareza absoluta:
um corpo estendido numa maca – estático, morto, falecido. Algo bastante coerente
para um filme que, mesmo trabalhando sob um fluxo de imagens bastante aberto (com
narrações over do protagonista escorrendo por entre os caminhos orgânicos
da história e ambíguo sobre o que está sendo mostrado e quando se passam as cenas),
sempre terá seu olhar no concreto – que, no caso, são as massas corporais dos
personagens, nada além. Esse jogo entre palpável e abstrato, ou físico e metafísico,
entrelaça todas as imagens, criando uma fricção que se faz a maior qualidade deste
primeiro longa de Rossana Foglia e Rubens Rewald.
A
faísca já nos é apresentada na primeira seqüência, com o tal cadáver estirado
e a narração do protagonista, Artur (Leonardo Medeiros), legista do IML, que descreve
objetivamente o morto, ao mesmo tempo em que imagina o que teria acontecido ao
infeliz. Da evidência, vai-se para o devaneio: Artur, de fato, é assim, um homem
recolhido que se relaciona com as pessoas ao nível biológico-fisiológico (inclusive
com seus amados pais). Mas esse trato matemático, orgânico, com as coisas é só
um ponto de partida para esse solitário homem mergulhar na abstração: Artur ficcionaliza
a partir dos corpos, imaginando detalhadamente o funcionamento dessas “máquinas
biológicas” e as circunstâncias que causaram as mortes que chegam no IML, assim
como os futuros óbitos (no caso das pessoas vivas que ele observa no metrô ou
no trabalho). Uma posição tão segura quanto conveniente para um sujeito tão aquartelado,
apático e socialmente enferrujado. É a partir de um corpo
(de uma mulher assassinada supostamente há dias) que Artur despertará de sua sonolência
com a vida, pois ele acredita que a morta é uma vítima da ditadura militar; portanto,
um cadáver dos anos 70. Algo bastante inusitado – tanto quanto a rapidez com que
ele encontra os dados da morta, com foto e tudo o mais, nos abissais arquivos
do DOPS; ou quanto Fernanda, a pessoa que vai reconhecer, o corpo ser idêntica
à falecida e ter mãe homônima (uma tal Teresa Prado Noth, ainda viva). Esta duplicata
do cadáver, sensual e espevitada, fará dupla com Artur nessa investigação quixotesca
que rompe qualquer idéia de verossimilhança. É
um momento, este pós-surgimento do corpo, no qual o filme radicaliza as sobreposições
apresentadas no prólogo, naquela narração over de Artur, o corpo mostrado
às vísceras e o irmão deste primeiro cadáver que surge pontualmente, quase simbolicamente,
para reconhecer o corpo. Agora, o tempo presente será invadido por imagens em
princípio efêmeras, depois remetendo mais aos anos 70, mas jamais saberemos se
são lembranças de Artur, alucinações produzidas no tempo presente da diegese ou
ilustrações da instância narradora. A verossimilhança intrínseca ao que seria
o “real” sofre mutações, e por isso o andamento do filme vai se tornando vaporoso,
entre ensaios de revelação e puro nonsense – opção que, por outro lado,
abre demais o filme a duas ou três seqüências bastante ruins, em que o nonsense
verte-se em ridículo, como a desengonçada cena do banheiro, que teria tudo para
pôr a pique um filme que navega muito bem no seu oceano visual. Se
a direção de atores é eventualmente carente de rigor, a imperfeita dramaturgia
responde muito bem ao estranhamento que o projeto estilístico pretende. Nessa
ambigüidade, consegue-se resultados notáveis, sobretudo ao diluir qualquer certeza,
inclusive se esta é uma obra surrealista, naturalista (a necrópsia dos corpos
é coisa digna tanto de um Aluísio Azevedo naquele naturalismo literário típico
do século 19; quanto de um thriller americano, com o naturalismo século
20 do cinema de gênero), realista, dadaísta etc. A própria recriação dos anos
70 é afinada ao espírito do filme: sutil, não grita aos olhos, sendo apenas um
punhado de objetos de época sob uma luz bocadinho mais quente; o que inclusive
vai fatiando nossa percepção, pois somos meio que enganados quando entram esses
flashbacks dúbios (ou falsos flashbacks, jamais saberemos), ou mesmo
quando Artur está imerso em suas investigações, que, mesmo bocado absurdas, são
perfeitamente cartesianas e justificadas pelo protagonista. Bastante
curiosa é a decupagem utilizada para construir essa história misteriosa, que lembra
de longe um filme de Jacques Rivette, com sua câmera fixa na maior parte das vezes
e que, quando móvel, passeia suavemente pelos espaços, meio encadeando os distintos
fluxos mentais e temporais (interrogação em ambos os fluxos). Aí voltamos aos
corpos. A certeza e sua vaporização estão justamente quando a câmera chega aos
corpos. Não são raros os planos de barriga, bunda, perna, crânios, dedos e outras
partes. Esses pedaços de carne humana são, certamente, o único porto seguro no
campo das imagens de Corpo. Seu entendimento é, inclusive, auto-sustentável,
pois o que essas massas corporais remetem são apenas a elas próprias. E,
também e assim, seu limite significante, e por isso esses corpos servem como meios
de implosão sensorial e lógica. Implosão atômica, bem representada em Rejane Arruda,
a atriz: ela é um corpo que tem sua duplicata ali mesmo, in loco, na versão
viva (Fernanda) e morta (Teresa Prado Noth?), ambas presentes em cena, mas também
nas tais “lembranças” de Artur. Esta é uma mulher três em um. Mulher morta (o
cadáver no IML), mulher ideal (a idealizada pela alucinação/flashback de Artur,
do filme ou de Artur-filme) e mulher carnal (a hormonal Fernanda). Estaremos,
aqui, bem próximos dos filmes de Resnais, do último Buñuel, ou mesmo no A História
de Marie e Julien de Rivette? E esse mistério que acompanha todo o filme será
resolvido? Se somente um corpo pode dar liga aos tantos que aparecem ao longo
da história, qual corpo falta?
Essa replicação e apagamento de corpos
e identidades parece estancado por uma revelação – revelação no sentido fotográfico
do termo (fazer parecer), bem ótica, bem visível: o corpo de Louise Cardoso. Este
é um momento crucial do filme, que conecta os tempos narrativos ao mesmo tempo
em que dá alta voltagem ao curto-circuito teleológico. Um corpo sublime, belo
em suas formas e presença, que confirma tanto o rigor estilístico de Rewald e
Foglia quanto realiza, na prática, como elemento em cena, objeto filmado, o projeto
do longa que está anunciado em seu título: Corpo. Outubro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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