in loco - cobertura dos festivais

Corações Desertos, de Cristiano Burlan (Brasil, 2005)
por Francis Vogner dos Reis

Entre o estilo e a saturação

Estamos em um terreno difícil porque Corações Desertos do cineasta estreante Cristiano Burlan é um filme que opta pela insistência do plano fixo nas ações dramáticas. Difícil por duas razões: primeiro porque é um cinema de depuração que exige uma sintonia forte, de elo inseparável, entre o estilo e o rigor conceitual; segundo que, pelas opções do diretor, cada elemento utilizado em cena (sejam eles o uso do som,  a opção de trabalho com os atores, a trama, a montagem) vai ressoar todos os princípios do projeto, ou na contramão, vai indicar a ausência de um projeto mais consistente conceitualmente.

O ponto de partida é típico do cinema moderno: um casal em crise. Desencontrados, ausentes na própria presença um do outro, e solitários mesmo enquanto comem juntos e fazem sexo. As primeiras cenas que vemos do casal de protagonistas (e também únicas personagens de Corações Desertos) são dos dois sozinhos, separados. O filme começa em um hospital, o que ressalta um certo sentimento de enfermidade que atravessa todo o filme. Ali eles se encontram, não trocam olhares e nem palavras. Ela o masturba e vai embora. A masturbação inclusive aparecerá outras vezes no filme, sempre como sintoma meio patológico da solidão e do individualismo que toma conta da relação do casal.

Não só por isso, mas fica claro que certamente uma referência do diretor é o cinema de Tsai Ming-liang e toda a relação que este tem com o esvaziamento das relações, a desintegração das emoções em uma relação, e de maneira inversa a explosão da reação individual, solitária, (tanto que a masturbação é algo constante tanto aqui como no cinema de Tsai Ming-liang - inclusive a masturbação realizada por uma outra pessoa, sem um contato sexual genital entre os personagens),  assim como o choro compulsivo de um personagem, que acontece tanto em Corações Desertos como em Vive l’amour, de Tsai.

Só que, se Tsai hoje em dia faz filmes muito calculados e controlados (para o bem e para o mal), ele sabe profundamente aonde quer chegar. Já o que parece faltar o filme de Cristiano Burlan é um eixo que oriente as coisas para além do exerício de estilo. Burlan sabe fazer composições, tem os olhos voltados para a textura e busca fazer uso das cores de maneira consciente, mas carece de um conceito mais sólido que integre com propriedade a busca por exercitar seu estilo. Uma coisa interessante é o gosto por filmar a cidade, que em alguns momentos geram sequências muito bonitas. Ali o cineasta deixa o protocolo da câmera fixa, da ação calculada, para deixar que o fluxo das imagens fale por si mesmo. Libera a Câmera para uma expressão mais livre.

Certamente interessa muito a Burlan a insistência da gravidade do som: O som dos passos, dos talheres à mesa, enfim, de todo objeto que gera o som (estridente), como se essa gravidade fosse fator indispensável à cena – mas por fim, parece um recurso programado que consegue causar estranheza, mas não um efeito realmente orgânico com toda a sua encenação e seu projeto estético, que claro, tem um forte desejo de expressão, mas que carece justamente de relações mais articuladas e integradas entre si. Seu gosto é por trabalhar a imagem sonora e visual de maneira radicalmente sensorial, mas a deficiência nesse trabalho é que o cineasta extravasa essas possibilidades, pois o fato de levá-las ao limite mostra mais uma insistência em reforçar uma idéia do que arrumar uma maneira mais eficiente de traduzi-la.

Enfim, Corações Desertos é um filme cheio de problemas por parecer indeciso com relação ao seu próprio projeto, insistente e redundante em alguns pontos, e inseguro em fazer algumas escolhas. O filme foi feito de maneira heróica: três mil reais e de modo completamente independente, com uma câmera digital HD e pequeno número de pessoas na equipe técnica e atores, o que certamente o faz peça única nessa Mostra de Cinema de São Paulo. Mas o que sobra em coragem e despojamento, falta em uma definição mais estreita ao arquitetar seu cinema. Burlan fez alguns curtas em digital e nesse seu primeiro longa-metragem, ele mostrou algumas preocupações particulares: esperemos seu próximo trabalho para ele nos dizer a que veio.


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