in loco - cobertura dos festivais

Conversas no Porto. Manoel de Oliveira e Agustina Bessa-Luis. Dezembro de 2005 (Conversazione a Porto)
de Daniele Segre (Itália, 2005)
por Cléber Eduardo

Ficções documentadas

Manoel de Oliveira define o documentário no início de sua conversa com a escritora Agustina Bessa Luiz em Conversas no Porto. Afirma que o conceito, a despeito da encenação mobilizada por Robert Flaherty em Nanook e da interatividade consagrada por Jean Rouch em Crônica de um Verão, é extremamente restrito. Segundo o diretor, é documentário o material captado por uma câmera sem o consentimento e o conhecimento das pessoas captadas: ter ciência da filmagem, afirma, estimula a ficção. Quem está sendo filmado começa a representar um papel, para “sair bem na fita”, e assim deixa de ser como exatamente é. A definição de Manoel de Oliveira, com todo o respeito por sua obra, impressiona pelo conservadorismo. E leva-nos a ter de acreditar que, sem uma câmera ligada, alguém não está representando um papel. Parece explícita sua discordância em relação à proposta do cinema verité de Rouch, que, justamente, sustentava-se sobre a verdade surgida diante da câmera, por conta e não apesar de sua presença, fazendo emergir palavras e situações possíveis em uma encenação para o outro.

Diante dessa definição, portanto, Conversas no Porto, que registra  em plano seqüência, com a câmera fixa,  uma conversa livre, bem humorada e cheia de sabedoria entre Oliveira e Agustina Bessa Luiz, não seria um documentário – afinal, cineasta e escritora, ao debaterem uma série de questões, muitas delas relativas ao processo de criação e a conceitos relativos à arte (como o de documentário), estão diante da câmera, conscientes de que estão sendo filmados, representando a si mesmos para nós. Suas discussões, em várias passagens, são hilárias. Estariam, por conta dessa consciência do aparato fílmico, mentindo? Ou seria Conversas no Porto o documentário sobre a reação de Manoel a Agustina e de Agustina a Manoel, ambos mediados pela câmera?

Independente do conceito, vemos duas personalidades quase opostas: Manoel fazendo às vezes do pensador, Agustina deliciando-se com sua iconoclastia. Enquanto o cineasta estabelece regras para melhor ordenar o mundo, em sintonia com sua clara desconfiança da arte moderna e de qualquer postura desconstrutiva, a escritora procura exceções para essas mesmas regras. Afirma Manoel que a música, ao contrário de outras artes, não cria imagens. Agustina retruca: “mas e as marchas militares?”. Ao longo do bate papo, que oscila entre frases inspiradas e banalidades cheias de bossa, com um e outro às vezes brigando para tomar a palavra, não sem ironia e deboche, tendemos a nos sentir, em linhas gerais, como quem espia aquele encontro, sem ser visto por eles. Não há nenhuma interferência do realizador Daniele Segre: o enquadramento nunca muda, com Manoel mais consciente da câmera, com olhadinhas na direção do realizador, e Agustina sempre olhando para Manoel, sem dar a menor atenção para o aparato.

O mérito de Segre, se rigorosos formos na avaliação, são apenas dois. 1) Reunir o diretor e a escritora para falar diante da câmera. 2) Deixar eles falando de acordo com o fluxo da conversa. Cinema de encontro, não entre realizador e entrevistados, mas entre duas pessoas colocadas uma diante da outra para expor suas idéias, pensamentos e muito de suas respectivas personalidades. Não são méritos pequenos: porque certamente se sai conhecendo mais de um e outro do que se poderia imaginar antes do filme começar.


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