conexão crítica
Quem julga e quem pode julgar?
por Cléber Eduardo

A crítica parece estar na moda nos anos 2000. Como tudo da moda, pede desconfiança. Há oficinas e cursos de crítica por todos os cantos, independentemente do que esteja sendo “ensinado”, havendo mais cursos de crítica que mobilização do pensamento crítico. Nunca os críticos discutiram a atividade com tanta freqüência em debates tão pouco frutíferos e nos quais há pouca relação entre as afirmações nas mesas e a atividade propriamente dita. Nunca tanta gente escreveu sobre cinema em impressos ou em sites, havendo, como no caso dos cursos, uma superioridade de críticos em relação à crítica como produção. Paradoxalmente, o cinema parece ter se tornado pretexto para os críticos, não a sua razão. É como se a atividade fosse anterior aos filmes e nem precisasse deles para se afirmar. É como se o crítico fosse superior ao cinema.

Afirmar-se. É do que se trata. Talvez por desejar compensar a ausência de pensamentos e discussão por meio dos textos, os críticos afirmam-se como críticos e como críticos acima de outros críticos, como se uma certa maneira de ver o cinema fosse superior ou mais legítima comparada a outras. Talvez seja mesmo. Mas essa superioridade e legitimidade, então, precisam ser expostas de maneira clara, com métodos e critérios explícitos nessas discussões. No entanto, nessas discussões, quando ocorrem, predomina a ironia, o escamoteamento e a fuga do x das questões, que é “lugar da emissão”. Quais são as posições em jogo? Quais são as visões? Diz respeito a filmes específicos ou a olhares de maneira mais ampla?

Dois novos “casos” agitaram a “comunidade crítica” recentemente. Em um deles, a premiação pelos críticos de A Encarnação do Demônio, de José Mojica Marins no Festival de Paulínia, comentada no blog de Luiz Zanin Oricchio, no site de O Estado de São Paulo, levantou uma poeira de discussão. Em resposta a um leitor, o crítico afirma que os prêmios da crítica se banalizaram, “uma vez que qualquer um se intitula crítico e existem críticos que votam em massa em um concorrente”. Esses grupos são de gosto homogêneo e disciplinado, ainda segundo Zanin. O Festival de Gramado, de acordo com o crítico, está disposto a resgatar a credibilidade do prêmio dos críticos, convidando um grupo restrito para compor o júri nessa votação. O segundo caso, justamente, é o de Gramado

Em primeiro lugar, não há discordância da afirmação de que há críticos demais e crítica de menos em impressos e nos sites, assim como não há como discordar de que há críticos demais afirmando a mesma coisa, inclusive entre os bons críticos (no julgamento deste editor). Sem ter ido a Paulínia, sem saber quem votou no prêmio, sem ter visto A Encarnação do Demônio, contemplado pela suposta estratégia de voto em massa dos “não críticos com gosto homogêneo”, nenhum pitaco aqui é viável, ao menos sobre essa votação em específico, até porque a Cinética não esteve no festival, muito menos foi representada nessa votação. No entanto, ao menos à primeira vista, há duas coisas em jogo. Uma é: quem decide quem é crítico e quem não é? A outra é: se um outro grupo de votantes tivesse premiado Mojica, sem os votantes do grupo de gosto homogêneo, o prêmio seria mais legítimo ou continuaria sob suspeita? O problema está nos votantes ou no filme eleito?

Embora seja óbvio que o que faz um crítico é a crítica, seus textos, suas idéias e sua capacidade, esse julgamento varia de acordo com quem julga. No julgamento deste editor, há poucos críticos no Brasil. E muitos resenhistas, historiadores do cinema, emissores de gostos, orientadores de consumo, aplicadores de adjetivos e narradores de sensações. Mas uma outra perspectiva, até mesmo dentro da própria Cinética, pode chegar a outra constatação. De qualquer forma, a crítica não é democrática. É preciso se tornar um crítico, se formar como um crítico e abordar o cinema como um crítico, mesmo havendo possibilidades variadas de tratamento do cinema. Um crítico de qualquer arte, porém, mesmo podendo e devendo ter uma formação mais ampla, deve ser um crítico de arte, acima de tudo, e não de sociedade, comportamento, moda, consumo ou dos supostos gostos do público. Deve ter como primeira atividade levar em conta os procedimentos, as escolhas, a linguagem por meio da qual o cinema se torna expressivo. O cinema como construção e não como sintoma somente.

O caso de Gramado, que, sensatamente, criou um júri de críticos, é mais concreto. Se não nos interessa na Cinética decidir quem é ou não crítico, ou quem pode ou não votar em uma premiação de críticos, interessa a este editor defender a iniciativa de Gramado. Primeiro porque é absolutamente necessário que os festivais escalem quem deva votar, independentemente do perfil dos votantes e dos critérios para se chegar a esses votantes, porque a escalação de quem pode ou não votar determinará o perfil do festival. Certos críticos votam nesse, outros críticos naquele, alguns nesse e naquele.

Para deixar claro: a Cinética não votará no prêmio de crítica em Gramado, nem foi, até o fechamento desta atualização, convidada pelo festival para uma cobertura crítica. Foi apenas credenciada para, em caso de haver ingressos, assistir aos filmes, sem as estadias e hospedagens oferecidas aos veículos de comunicação. No entanto, paradoxalmente, a Cinética foi convidada, com estadia e transporte pagos, para uma mesa de debates. Sintomático. Interessa ao festival que a Cinética fale de si, ou da crítica, mas não que seja crítica na cobertura. Interessam os críticos, não o cinema. 

Paradoxos à parte, a decisão de Gramado é tão acertada quanto a escolha do júri oficial. Tão necessária quanto a escolha, porém, é a transparência do processo. É preciso saber quem vota. Quem faz escolhas precisa ter seu nome evidente, precisa assumir a responsabilidade da escolha. Em Gramado, entre críticos e repórteres, os convidados a votar foram Luiz Carlos Merten (O Estado de São Paulo), Silvana Arantes (Folha de São Paulo), Elaine Guerini (Valor Econômico), Carlos Heli de Almeida (Jornal do Brasil), Marcelo Janot (Críticos.com), Nelson Hoineff (Críticos.com), Marcio Rodrigo (Gazeta Mercantil), Ricardo Dahen (Correio Braziliense), João Sampaio (A Tarde), Luiz Zanin (O Estado de São Paulo), Maria do Rosário Caetano (Revista de Cinema), Monica Kanitz (Jornal do Comércio), Marcos Santuário (Correio do Povo), Roger Lerina (Zero Hora), Ivonete Pinto (Teorema), Rodrigo Fonseca (O Globo), Marcus Mello (Aplauso), Marcos Petrucelli (e-Pipoca), Celso Sabadin (Planeta Tela) e Kleber Mendonça Filho (Jornal do Commercio - PE). Dois representantes de O Estado de São Paulo e do Críticos.com. Além de Críticos.com, o e-Pipoca é outro site convidado.

Pode-se discutir à vontade essa escalação, mas não se pode questionar a legitimidade dela. Coube ao festival decidir quem e quais veículos podem votar e é do direito de um festival tomar decisões em nome de seu perfil. Essa lista de votantes, porém, deveria ser pública. Chegou à Cinética por meio de um dos convidados. Pública sim, evidentemente. E o mesmo vale para as comissões de seleção de festivais de curtas e longas que, de maneira bastante geral e generalizada, não têm os nomes dos integrantes divulgados antes ou depois, como se quisessem esconder e proteger os selecionadores dos efeitos de suas escolhas. No fundo, em quaisquer dessas questões, a questão é de transparência. Quem julga, analisa e seleciona deve mostrar a cara, assumir de onde fala e escolher, além de, sim, justificar suas escolhas e suas decisões. São pagos para isso. E em alguns casos, com dinheiro público.

Agosto de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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