conexão
crítica A enunciação objetiva e
a percepção subjetiva por Cléber Eduardo
A
reação de Francis Vogner dos Reis
às reações de Eduardo Escorel (na revista Piaui) e Jean-Claude Bernardet (em seu
blog) em relação a Moscou, de Eduardo Coutinho, é louvável enquanto atitude
resistente a “legitimações apoiadas em assinaturas”. Não é nada mais que ataque
ao “efeito autor”, conceito de Michel Foucault segundo o qual um texto, para ter
valor, precisa de um autor reconhecidamente respeitado. Esse é um procedimento
histórico, inexistente antes do século XVI, que é afirmado a partir do século
XVII, sobretudo para textos científicos, mas também em textos literários. Nas
palavras de Foucault em O Que é o Autor?, pagina 46, o efeito autor é a
"característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento
de alguns discursos no interior de uma sociedade" . Esses discursos devem
ser recebidos dentro de um certo estatuto. Francis Vogner dos Reis coloca-se contra
essa pré-determinação de como devemos receber os textos por conta de seus autores
legitimados. No entanto, quando se refere a Bernardet
como “papa”, após afirmar seu compasso errado na dança em torno de Moscou,
Vogner retorna ao efeito-autor, embora para negá-lo. Nega, mas retorna, não se
desprende dele e, em certo sentido, produz outro efeito: o “defeito-autor”. Papa
é uma forma de encarar Bernardet como um crítico oficial, não porque reproduz
um pensamento oficial (qual seria?), mas porque é um crítico reconhecido como
crítico importante, legitimado, do qual se deve desconfiar pelo posto de importância
ocupado, se seguirmos a ironia empregada por Vogner. Se a idéia é esvaziar o “efeito-autor”,
por que não ignorá-lo, simplesmente, e ver apenas a autoria de Bernardet no texto
sobre Moscou, não o autor anterior ao texto e fora do texto? Porque se
a crítica a Bernardet é ao fato dele ter se afastado de Moscou, de modo
a ficar em suas próprias idéias, Vogner faz o mesmo em relação ao texto criticado.
Afasta-se dele para confirmar suas afirmações sobre Bernardet. Afirmações
a serem melhor levadas em conta antes de serem julgadas como equívocos ou geradas
fora do filme. Vogner identifica esse fora do filme no diálogo com pontes e mediações
empregadas por Bernardet para se referir a Moscou. Essa estratégia de dialogar
com outras visões ou de assimilar visões outras como próprias tem tudo a ver com
o ensaio crítico como conceito – de Montaigne (em Ensaios) a Walter Benjamin
(em Livro das Passagens). Não existe um sujeito fora de sua circunscrição
para o ensaísmo, e, em sua afirmação, esse sujeito se coloca como soma de alguns
outros. Também é possível identificarmos esse caminho no ensaio audiovisual de
Jean Luc Godard em sua série História(s) do Cinema, com a diferença de
que nos ensaios de Godard e em vários momentos de Benjamin, em vez de se dar crédito
aos outros, toma-se de empréstimo algumas idéias e citações sem garantias de devolução
posterior. No texto de Daniel Caetano
sobre Moscou, também existe esse diálogo. Não apenas por dentro do cinema,
mas por dentro das idéias em cinema. Em um post posterior
em seu blog, o mesmo Bernardet, ao analisar a exposição de Sophie Calle pela perspectiva
de Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, explicita o procedimento: a relação
entre obras e percepções ajuda a compor uma visão sobre obra e idéias, dinâmica
essa já bastante presente no livro do crítico sobre Abbas Kiaristami, onde, saindo
das especificidades dos filmes do cineasta iraniano, coloca-os em relação a especificidades
de filmes e livros brasileiros. Nada é tão específico assim e, ao se procurar
colocar as coisas em diálogo, pode-se tatear um espírito mais amplo, que não diz
respeito a apenas um artista, a apenas uma cultura ou a apenas um momento histórico,
mas à própria linguagem artística e às próprias motivações humanas. Poucos críticos,
do Oiapoque ao Chuí, têm disposição e fôlego para promover essas “passagens” –
no sentido, sim, benjaminiano. É uma forma de por tudo em trânsito em vez
de fixar juízos. Estamos diante de duas maneiras de lidar
com um texto de análise crítica. A de Vogner reivindica aproximação com algo apenas
do filme, com o específico dele, sem se levar em conta como esse específico pode
lidar com outras operações no cinema e fora dele, com questões filosóficas fundadas
e problematizadas antes de Coutinho. Vogner quer, por seu texto, a enunciação.
Há o risco nisso de transformar uma visão – apenas uma visão – na única visão
possível a partir do visto em um filme. Há nisso o desejo de que a crítica, em
suma, reponha essa enunciação, tendo, como matéria-prima, somente o enunciado
tão qual absorvemos. Essa absorção não pode ser deixada de lado. Ela é a matéria
prima da crítica – mais que o filme. O filme é o estímulo, a sensação, não a cognição.
Uma critica é operação cognitiva a partir de sensações. Bernardet
deseja trazer para a dança um campo mais amplo da cultura e do pensamento. Não
tem uma visão pronta de Moscou, como pode parecer ao leitor mais apressado
do artigo de Vogner, mas uma dificuldade assumida para lidar com Moscou,
que voltou a ser tema de outros posts do crítico, no qual suas idéias permanecem
em movimento, inseguras, hipóteses sobre as quais pode ainda acrescentar algo,
aparar alguma coisa. É um problema levado em conta, e ignorado por Vogner. Isso
porque, ao levar em conta um post sobre o filme que expõe mais fortemente
as dúvidas de Bernardet referente aos fantasmas de Moscou, Vogner perde
boa parte de sua argumentação de ataque e passa a ficar ele mesmo em dúvida sobre
o percurso e os objetivos de Bernardet. Bernardet está atrás
de uma possível circunscrição para a noção de Auto-Ficção, que, justamente porque
está em processo de construção, sofre de falta de rigor conceitual e exige mobilidade
permanente. Sua matriz é o ensaio, de Montaigne em diante, por isso as dúvidas,
somadas às intuições e as tentativas de aplicação, são superiores às afirmações.
Tudo está em permanente movimento, sem se partir de algo já pronto, algo encerrado
e codificado, que apenas precisa de “objetos artísticos”, mais que de obras, para
mostrar sua sustentação. Bernardet lida com obras, mais que com objetos, por isso
o conceito não se firma, porque depende das obras, com suas lógicas específicas,
que nem sempre respeitam as lógicas gerais. Isso não o impede de empregar uma
obra para lidar com outra, fazendo um trânsito interartístico para colocar os
procedimentos em associação, não importa se com obras de uma mesma matéria prima
(palavras, imagens, sons). Quando se refere a Moscou,
Bernardet, por meio de resenhas de Carlos Alberto de Mattos e de Luiz Zanin Oricchio,
por meio de “outros”, de enunciações produzidas fora de si, coloca sua percepção
em jogo, praticando, mais que buscando, sua noção de Auto-Ficção – que não é distante
da de “ensaio”, no sentido de transformar colocações de terceiros como parte de
nós mesmos. Bernardet fala de fantasmas e de pistas. Lança hipóteses e não juízos.
Tem um interesse específico, lida com ele, mas não submete o filme à sua visão,
pelo contrário. Ele procura no filme uma visão do filme e coloca essa visão do
filme em contato com a sua. É uma dança, não uma marcha. A certeza parece estar
mais na visão de Vogner: “Diferente
de seus críticos, o esforço de Coutinho é transcender labirintos teóricos e não
se enquadrar em determinações que respondam a expectativas ou que caibam, cartesianamente,
em gavetinhas para relatórios de estudiosos.” E
essa certeza não está esboçada apenas na categorização da percepção crítica de
Bernardet, que não parece enquadrável na classificação de cartesiana e engavetadora,
mas também quando Vogner coloca sua visão sobre Moscou como a correta: “Por
isso a confusão: essa ausência sentida, essa ausência da imagem do cineasta, é
necessária. Existe uma tensão que não se submete a um controle prévio ostensivo
(o método como “modo de segurança”). Ele não sai da frente das câmeras porque
está “desestabilizada” a noção de sujeito, nem porque ele se omite, nem porque
ele assume um papel de demiurgo. Sua imagem e seu método haviam se tornado sua
zona de segurança e Moscou revela o fim da zona de segurança entre oposições (dicotomias
é sempre confortável à nossa dilética), até então bastante claras nos outros filmes
do cineasta, mesmo com suas fissuras.” Não se trata de
tomar partido de um ou de outro lado em relação à visão mais certa ou mais equivocada
sobre Moscou, mas de mostrar como muitas vezes uma linha de argumentação
reproduz os mesmos vícios e os mesmos métodos aos quais visa atacar. Se para Vogner
o texto de Bernardet não diz respeito a Moscou, mas a ele mesmo (Bernardet),
pode-se dizer que o texto de Vogner não diz respeito ao texto de Bernardet, mas
a uma visão dele mesmo sobre o que significa Bernardet, independentemente de suas
colocações. Também é preciso salientar que, se uma crítica
sempre é cognitiva, porque parte de uma visão da obra e não da obra em si mesma
(sem visão sobre ela), não podemos ignorar as evidências. É certo que, ao contrário
da pintura, por exemplo, o cinema é múltiplo. Muitas situações e alterações acontecem
o tempo todo diante de nossos olhos. Procurar montar uma visão a partir dessas
alterações permanentes é desafio complexo. Não existe possibilidade de uma aproximação
somente objetiva com as imagens. No entanto, as evidências estão lá, sim, e precisam
de atenção. Não se faz uma crítica sem cognição, mas uma boa crítica parte de
algo visto, não de algo suposto ou modificado. Em debate
realizado em uma das atividades do Doc TV em Brasília, em 2008, Bernardet falou
sobre Jesus no País das Maravilhas, de Newton Canito, e, ao ter sua adesão
ao documentário confrontada com evidências do próprio documentário, afirmou algo
a ser ainda bastante questionado: os filmes não nos dizem nada, somos nós que
dizemos por eles (cito de memória). Não haveria, portanto, enunciações. Somente
percepções enunciadoras. Não é o caso de duvidar da importância das percepções
enunciadoras, mas elas só são possíveis como relações com uma enunciação anterior.
Vogner deseja valorizar essa enunciação anterior. Bernardet, suspendê-la. Não
existe uma coisa sem a outra. E os dois lados dessa questão devem saber disso. Setembro
de 2009
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