conexão crítica
Moscou e a falência dos conceitos
por Francis Vogner dos Reis

Em uma época tão entediante em sua escassez de inteligência e lucidez, qualquer opinião que venha sacudir minimamente questões que parecem unânimes e generalizadas tem o poder de um abalo sísmico – ainda mais se essas opiniões venham legitimadas por alguém que inspire respeito por sua integridade ou por sua história. Talvez por isso tenha sido possível ver em comunidades virtuais, blogs, twitter, muita gente – entre jornalistas, espectadores, críticos e profissionais de cinema – se surpreendendo com a não-adesão de Eduardo Escorel a Moscou, o filme de Eduardo Coutinho. Mas ao ler o texto na Piauí (“Coutinho não sabe o que fazer”, Revista Piauí 35) confesso que não encontrei motivo algum que justificasse o burburinho que deixou toda gente tão tensa e destilando veneno.

Sim, as palavras são duras, mas os argumentos do artigo partem de uma percepção bastante desgastada sobre o que eles tratam (autor e filme). Por isso, o espanto geral parece ser mais com o posicionamento de Escorel perante Moscou do que com suas razões. É aquela velha pendenga: “de qual lado você está?”. Se isso tivesse vindo de um strictu crítico seria empáfia, mas veio de Escorel, cineasta e montador de filmes importantes com presença nas fileiras do cinema brasileiro há mais de quarenta anos. Talvez por isso, independente da argumentação, o que escreveu é considerado automaticamente uma “controvérsia”, porque é como se o seu texto catalizasse para si as linhas de força centrais do cinema brasileiro concentradas na figura do diretor Coutinho – além de que esse questionamento veio de um ex-parceiro e um semelhante (um, perdoem o palavrão, “documentarista”). Assim como outros cineastas desse período que ainda se pronunciam sobre questões cinematográficas mais gerais (Cacá Diegues à frente), o que ele disse teve um peso diferente porque “de dentro” e, por isso mesmo, é um diagnóstico “representativo” do estado do cinema brasileiro. E é conveniente tratar de Coutinho porque ele seria nos últimos dez anos o nosso principal cineasta, porque contemporâneo e diretamente um elo com o Cinema Novo – pelo menos no que o movimento tinha de mais livre e menos coorporativista.

Depois disso quem entrou no compasso errado dessa dança foi o papa Jean-Claude Bernardet, que há tempos mantém um blog no qual publica estratos de suas impressões sobre alguns filmes brasileiros de sua especial predileção, sempre aqueles que respondam questões que ele cultiva atualmente – em especial ligadas aos efeitos e às estratégias do “documentário brasileiro”. Bernardet legitimou (como vimos, tudo passa mais por uma questão de legitimação do que de diálogo) o texto de Escorel, dizendo que concorda plenamente e que Escorel analisou o caso com “fina sensibilidade”. Em seguida, ele repisa e desdobra alguns conceitos com os quais já trabalha há um tempo em breves textos no seu blog. Percebe-se, em ambos os casos, dificuldade em ir ao filme e se ter uma experiência do filme – por isso, o uso de pontes e mediações para se falar deles, filtros conceituais. Só que o esforço tem o resultado inverso, e Moscou fica cada vez mais longe.

Entre tantas questões que falam sobre questões, respondem a questões e se multiplicam em outras questões, uma se coloca – menos ao filme em si e mais às estratégias de valoração, de aproximação e de problematização de Moscou. Afinal de contas os critérios usados para dizer que Moscou é um fracasso têm alguma substância além das categorias instrumentalizadas pelos críticos como “documentário” e a dicotomia “real-ficção”? Escorel, e por tabela, Bernardet, conseguem dizer algo que confronte Moscou a partir do que o filme, efetivamente, propõe? Em suma: o fracasso é de quem? De Coutinho em Moscou ou do(s) crítico(s) perante um filme com o qual não conseguem lidar? Se Moscou despertou algo realmente poderoso foi esse impasse no olhar de alguns críticos que, simplesmente, não conseguem se pronunciar sobre ele e transferem isso ao filme, como se o problema estivesse no filme e não neles mesmos.

Questão de “pequeno escopo”

No fundo, talvez a polêmica Moscou só revele a falência retórica e a confusão mental de uma geração. O que fica do artigo de Escorel e das reações de Bernardet é somente um pântano conceitual raso. O artigo “Coutinho não sabe o que fazer” repete (e pior, demanda) idéias cristalizadas tais como o processo imponderável e fortuito do documentário ou a necessidade de “acontecimentos para registrar”. Principalmente, sua crítica é a do método deste filme especificamente. É como se o cineasta tivesse abrindo mão do que é o “mais justo”, do que por si só – pelo menos como ponto de partida – é um trunfo e daquilo que efetivamente resulta em um documentário: o olho no olho, a “presença” do documentarista e, principalmente, a coerência inicial do “projeto”. Maldito o país em que um filme é, primeiramente, um projeto, que objetivamente seria uma porção de princípios coerentes que norteariam o resultado estético do filme que ainda não existe. Se essa busca começa por um “não saber” e se desenvolve em um processo, significa que o cineasta “não sabe o que fazer”. É dose.

Godard também raramente (ou nunca) sabe exatamente o que quer quando começa a fazer um filme: os sentidos não estão dados – os pressupostos sim, os sentidos não. Ao contrário de muitos dos nossos filmes aqui no Brasil, em que os sentidos já estão dados de antemão e só vemos a exposição de procedimentos e métodos engessados, enclausurados na busca de efeitos e na enunciação de sentidos. Coutinho não faz isso em Moscou e, claramente, o incômodo de Eduardo Escorel, entre outras coisas, é dessa seara. Ele parece acreditar piamente na “categoria” documentário e que ela deve sempre se servir de um método em que se reconheça seu autor, e se proponha a buscar o que os pressupostos propõem. Ele fala de omissão deliberada do cineasta e que Coutinho pensou que nos ensaios talvez pudesse surgir algo para filmar. Desde o início, pois, o articulista coloca a primazia dos acontecimentos (como erupção do real a ser capturado) sobre qualquer outro elemento do processo de um documentário.

Ele vai e volta entre o que seria a natureza do documentário e o que Moscou não consegue atingir (não pode enquadrar o filme), leva em conta o processo anterior, não o filme acabado – sendo que o processo só ganha relevo se isso se constitui como um elemento estético, um desenho que tem contornos definitivos no trabalho acabado. É como se o valor fosse dado por meio do impulso que o constitui e o orienta: o método. É triste ver que Escorel refere-se à Moscou quase sempre nessa chave do documentário e a Eduardo Coutinho, delega o papel de “documentarista”. Ele mente quando diz isso? Não, é óbvio. Mas levando-se em conta a concepção anacrônica que ele mesmo tem de “documentário”, ao falar nesses termos ele encerra e ignora a potência dos “documentários de Coutinho”, os subestimando. É como se o cinema fosse uma questão segunda, enquanto, na verdade, é uma questão primeira.

Já a legitimação de Jean-Claude Bernardet me lembrou muito quando Mirian Schnaiderman escreveu em uma edição da revista Sinopse que Walter Salles fez uma “crítica demolidora” ao cinema da violência do “tudo mostrar”. Na verdade, a crítica não era demolidora, era só uma repetição de lugares comuns sobre a representação e a banalização da violência, do fora de plano, etc. Mas foi conveniente citar o artigo escrito pelo Walter Salles na Folha, porque seria um diretor humanista com preocupações de linguagem respondendo a esse dogma do que pode e do que não pode representar. Os argumentos eram vulgares, mas serviam para legitimar (e fazer eco) ao que Schnaiderman propunha em seu texto. Ou seja: legitima-se o banal com visibilidade porque é uma “plataforma” possível – é a possibilidade do debate não importando se o que se diz está aquém do filme ou não. Importa que se confirme uma idéia, uma tese ou que ajude a compor um discurso sobre as questões do filme, sobre o autor, sobre o momento histórico.

Bernardet não precisaria e nem deveria, pelo menos hoje, ter um escopo tão pequeno, mas ao legitimar a polêmica de Escorel (na verdade algumas sentenças do texto de Escorel) essa cordialidade intelectual só serve para desvelar a fragilidade crítica (e meramente retórica) de ambos, porque não escapam às convenções teóricas sobre sujeito, autor, ficção-documentário, real, encenado e etc. Dizer que essas categorias são mortas é besteira, mas procurar no filme – estritamente – respostas a esses pressupostos é negligenciar as manifestações particulares desse mesmo filme. Escorel e Bernardet procuram o autor, o grande mediador/modelador/problematizador, o que está entre o método, o resultado e os princípios desse método. Não o encontraram do modo como esperavam ou pelo menos, não da maneira que respondesse aos seus anseios pós-Jogo de Cena. Dizem, portanto, que ele é ausente.

Se nessa história toda Escorel parece confortável nos lugares comuns de que parte para falar de Moscou e de Eduardo Coutinho, Bernardet, por sua vez, está blindado por suas questões, nas quais ele encaixa Moscou – apesar de que não é de se ignorar que seus questionamentos constantes são a busca de algo, são um confronto com o filme. Bernardet parece fascinado por tudo que vaza, que está antes e depois do filme, às vezes tudo que o circunda, outras vezes, por fronteiras: até onde o filme foi? É possível ir mais longe? Esse é um problema porque estipula limites (que sempre lida com referenciais anteriores, convenções) sem ir mais fundo no que é específico do filme. Moscou não nos dá esses limites com tanta facilidade. No último texto postado em seu blog ele finalmente se rende à evidência: “O maior problema de Moscou talvez sejam os fantasmas que se interpõe entre nós e eles”. Exato. Fantasmas esses que precisariam ser nomeados e questionados. Eles sempre existiram e sempre foram mediadores, e muitas vezes, obstrutores.

Algumas palavras sobre Moscou

As distinções entre os relatos às vezes estão lá, às vezes não, elementos pessoais dos atores se misturam aos do texto. Jogo de Cena fez isso? Em parte. A câmera fixa que encadeava os depoimentos das mulheres traçava limites, réplicas de discurso, havia a figura de Coutinho, o teatro era um fundo, etc. Agora Coutinho propôs um texto a atores de teatro da companhia mineira Galpão. Coutinho trabalha sobre um mundo previamente organizado (um texto de Tchekov), e, ao propor ensaios e exercícios dirigidos por um outro (Enrique Diaz), desorganiza. Por isso a confusão: essa ausência sentida, essa ausência da imagem do cineasta, é necessária. Existe uma tensão que não se submete a um controle prévio ostensivo (o método como “modo de segurança”). Ele não sai da frente das câmeras porque está “desestabilizada” a noção de sujeito, nem porque ele se omite, nem porque ele assume um papel de demiurgo. Sua imagem e seu método haviam se tornado sua zona de segurança e Moscou revela o fim da zona de segurança entre oposições (dicotomias é sempre confortável à nossa dilética), até então bastante claras nos outros filmes do cineasta, mesmo com suas fissuras.

Bernardet pensa justamente o contrário: no texto de seu blog diz que, em sua fantasia, Coutinho deveria sentar em frente à câmera e ficar em silêncio. Pois Coutinho fez o contrário, e isso é extraordinário. Inacabamento, incompletude? Sim e não. Sim porque isso é importante na forma de Moscou, porque se filma ali um processo; e não, no sentido de que o filme é esse e ele parece pleno na sua condição. Ambos, ficção e documentário, contêm em si mesmos os vestígios de inacabamento do mundo, e neles o cineasta inscreve sua “porção” de criação. As particularidades de um filme de ficção ou um documentário não podem ser anuladas, mas se em si são ponto de partida e/ou chegada, é um problema, uma involução crítica. É ai que o real vem à tona e é a prova dos nove do filme: será que surge algo que nos confronta a ter o que dizer?

O fato é que Moscou delineia essa incompletude, a expõe. Existe um rigor bastante sofrido, um rigor ascético, não intelectual, no sentido diminuto do termo. Diferente de seus críticos, o esforço de Coutinho é transcender labirintos teóricos e não se enquadrar em determinações que respondam a expectativas ou que caibam, cartesianamente, em gavetinhas para relatórios de estudiosos. Existe ali algo muito maior do que seus significados. Agora, se essa percepção não vale nada, se é preciso sempre encontrar a palavra para se pronunciar sobre o filme, se sempre é obrigatório instaurar as problemáticas por meio de seus signos, então não é preciso nem discutir. Não sejamos críticos, mas sim, legistas da imagem.

Agosto de 2009

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