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crítica Chega de saudade: Por
uma crítica em crise por Cléber Eduardo
Uma suposta crise da cinefilia e da crítica, diagnosticada
por uma suposição do organizador da Mostra de Cinema de São Paulo, Leon Cakoff,
ocupou as páginas da Folha de S. Paulo em outubro, com repercussão no blog Ilustrada no Cinema
e nas conversas entre críticos de distintas idades, assim como de diferentes regiões.
Cakoff havia “diagnosticado” a crise de cinefilia e crítica, não se sabe exatamentecom
quais argumentos, durante a coletiva de lançamento da Mostra de Cinema de São
Paulo. O crítico Cássio Starling Carlos, em resenha sobre o livro A Rampa,
de Serge Daney, rebateu a suposição do organizador do evento. Citou espaços de
reflexão, entre as quais a Cinética, que, à margem das empresas de mídia e/ou
acessados pela Internet, estimulam a cinefilia, não em forma de culto de fãs,
mas como paixão crítica. Cakoff respondeu a Starling Carlos
na mesma Folha, em artigo não exatamente cristalino em suas argumentações, com
um questionamento sobre a atitude desses espaços (os elogiados por Starling Carlos):
por que não entrevistaram o diretor francês Claude Lelouch, convidado da Mostra,
que fez seu papel preferido de vítima histórica dos críticos franceses e da Nouvelle
Vague? Para Cakoff, Lelouch foi e é rejeitado pelos críticos porque faz sucesso
– porque faz sucesso, seguindo o raciocínio do organizador da Mostra, teria importância
estética. Talvez o mesmo raciocínio possa ser empregado por Cakoff para reverenciar
Moacyr Góes ou Roland Emmerich. Se não entrevistar Lelouch é uma recusa a cultura
crítica do cinema, o que significa, nesse sentido, o resistente boicote da Mostra
de São Paulo a obra da japonesa Naomi Kawase, exibida este ano apenas na grade
do Festival do Rio? Supõe-se que Lelouch, no critério da Mostra, seja superior
a Naomi. Em um debate realizado para lançar A Rampa,
com a presença de Cakoff e dos críticos Luiz Zanin Oricchio e Inácio Araújo (onde
deveria também haver a presença do francês Serge Toubiana, que acabou fazendo
forfait), deu-se prosseguimento à suposição de Cakoff. Já no artigo para
a Folha de S. Paulo o organizador da Mostra havia eleito Serge Daney como o crítico
modelo, por tratar a crítica como exercício de paixão – e essa paixão poderia
resgatar os cinéfilos perdidos. Reverência superior a referência. Slogans, acima
de tudo. Porque Daney pode ter sido sempre motivado pela paixão, mas era uma paixão
tanto pelo cinema quanto pela análise – conseqüentemente, uma paixão retrabalhada
pela razão na atividade escrita. Daney não era crítico digerível, mas para quem
se interessava, de antemão, por uma reflexão sobre filmes e cinema (e, curiosamente,
alfinetou mais de uma vez o cinema de ninguém menos que... Claude Lelouch). Embora
fosse mais honesto deixar Daney de fora dessa discussão, para evitar o uso de
seu nome em vão e sem rigor, é importante lembrar do interesse do crítico francês
pelas novidades, sobre novas maneiras de produzir imagens e novas formas de se
relacionar com elas, inclusive na televisão, em telejornais, nos reality shows,
encarando a imagem contemporânea como labirinto a ser perseguido e decodificado,
apreciado e questionado – sem tons apocalípticos e catastróficos, sem impotência
e sem tom ranzinza, curioso com as novidades e com os desafios de se analisá-las.
Um crítico de seu tempo, sem pressupostos ou preconceitos, com a sede de entender
a imagem, sua relação com o mundo, mas não como confirmação ou ilustração dele,
e sim como, justamente, a impossibilidade de se retê-lo ou reproduzi-lo. Voltando
à crise da cinefilia e da crítica, cabe tentar perguntar de novo: qual a questão,
afinal? Como esta crise se manifesta? A crise da cinefilia constatada por Cakoff
talvez seja percebida por sua condição de distribuidor. Como tal, ele tem acessos
aos números da Mais Filmes, sabe como anda o movimento das salas de exibição.
Já a crise da crítica se manifestaria pelo exercício de gosto e de cotações, que,
embora estejam em alguma medida a serviço de guiar o leitor para esse ou aquele
filme, não tem esse poder de convencimento. Não há muito a discordar sobre a questão
do gosto, do impressionismo, das descrições de percepção, mas a crise apontada
tem outra natureza: é de influência no consumo de ingresso. Por outro lado, se
a crítica desconecta-se desse lado “negócio” da exibição, pode se aprofundar mais
nos filmes, não ser tão submissa a agenda de lançamentos, ser realmente crítica
e não resenha de estréias. Há um extracampo nessa discussão:
o preço do ingresso. Se há queda de freqüências nas salas de exibição, isso tem
menos a ver com a perda do interesse pelo ritual comunitário de se ver filmes
em salas de exibição e mais pelo custo cinema. A Mostra de Cinema de São Paulo,
aos fins de semana, cobrou R$ 16,00 o ingresso inteiro. Seria um estímulo a cinefilia?
Ou uma elitização da mesma? Se os jovens estão baixando filmes na Internet e copiando
DVDs, indo menos ao circuito, é por questões de ordem financeira também. A cinefilia
mudou sim, em parte porque deixou de ser popular (como constatava Daney ainda
nos anos 70), em parte porque, para sobreviver, alimentou-se em outras fontes.
Pode-se afirmar sem muitas dúvidas que nunca se viu tantos filmes como hoje, nunca
se teve tanto acesso à cultura cinematográfica, nunca se escreveu tanto sobre
cinema, nunca se publicou tantos livros de teoria, nunca houve tantos cursos e
alunos. Há mais ou menos pessoas lendo críticas? Não se
sabe. Mas a Cinética, entre outubro de 2006 e 2007, viu seu universo de leitores
crescer mais de 200%, de maneira progressiva, nesses 12 meses. Se crise há, cada
crítico, em sua experiência pessoal, terá sua percepção. Em um momento histórico
imagético, de formas e discursos visuais, um crítico tem muito a fazer em vários
sentidos, muito a refletir sobre as novas formas de articulação, sobre os intercâmbios
entre as mídias, sobre as mudanças na televisão, sobre a dinâmica do You Tube.
Também tem cânones a rediscutir, novos cânones a pensar, eleições a fazer no cinema
contemporâneo, sem saudade de tempos melhores vividos ou não, sem olhar o cinema
como algo sagrado e a ser colocado em um panteão, mas sim encarar a imagem como
produto de uma crise permanente da expressão, como crise potente para outros estímulos
e como estímulo para uma crise constante. É disso que trata, afinal, a crítica. Novembro
de 2007
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