conexão crítica
Autonomia do fragmento e da experiência
por Cléber Eduardo

Divagações sobre a crítica – Capítulo 1

Por quais caminhos pensam e sentem os críticos? Com quais critérios de valoração e estratégias de abordagem? A aparente ditadura dos gostos e das descrições de sensações, vestidas de sentenças ao espectador (“vá” ou “fuja”) ou de medição de eficiência (“isso funciona, aquilo não”), inviabilizam uma resposta confiável ou rigorosa. Critérios empregados em elogios podem ter sinais invertidos, nos textos diferentes de um mesmo crítico, para serem usados em reprovações às mesmas características em outro filme. No entanto, mesmo que os critérios não se manifestem de maneira sólida e coerente, podemos perceber esboços deles, ou mesmo sinais fantasmagóricos de suas presenças, mesmo nos textos mais impressionistas, de poucas argumentações e muitas frases-diagnósticos, que tratam filmes como organismos, apontando onde estão as disfunções e os sinais de saúde.

O formalismo é atacado como estratégia asfixiante na obra de um cineasta e celebrado como recurso potencializador de autenticidade na de um outro. Maneirismos espancados trocam de nome, passam a ser chamados de “estilo reconhecível” ou “assinatura vistosa” e recebem os confetes dos detratores. Essa ausência de programas estéticos, rompendo com a marca de muitos críticos de décadas anteriores, que por sua vez carregavam os exageros restritivos típicos de toda postura programática, cria um (ou a impressão de) vale-tudo sensorial. Há quem defenda a falta de parâmetros e referências na operação de valoração dos filmes por acreditar em uma crítica cujos critérios são estimulados e alterados pelos próprios filmes. Segundo essa postura, o crítico não poderia ter uma visão de cinema anterior à experiência da exibição, mas viver esta como a construção de uma visão de cinema. Cada filme traria embutido em suas características uma maneira de enfocá-lo. Seria preciso identificar no próprio filme as intenções do projeto e avaliar se essas intenções foram ou não cumpridas no geral e em suas especificidades. Ou seja, um processo retroativo, onde, pelo resultado final, supõe-se qual foi a meta. Importa menos a obra como está diante de nós e mais se ela atende a seu suposto planejamento. Mas pode-se mesmo avaliar isso sem ter tido acesso ao roteiro ou a uma carta de intenções do diretor (pré-realização, pois poderia ser reescrita depois)?

Se já nos eram caras em reflexões pessoais ou em conversas entre os redatores, ou mesmo com realizadores (com especial destaque para recente diálogo com o dietor Danilo Solferini), tais questões sobre a crítica brasileira, contemporânea ou não, agora ocuparão a sessão Conexão Crítica. Essa decisão de pensar a maneira de escrever críticas e pensar o cinema dentro da própria revista é uma forma de questionarmos nossos próprios princípios e atentarmos para nossas próprias incoerências em um exercício pautado tanto pela paixão como pela razão, tanto por impulos e pela obediência à sensibilidade como pela análise lógica de
determinados procedimentos.

Fato é que, no que se refere aos critérios críticos, pode-se perceber, em linhas gerais, alguns padrões. O pacto com a verossimilhança, por exemplo, é dos mais recorrentes. Se o crítico não acreditar na viabilidade de um acontecimento tal qual mostrado no cinema, sua crise de crença nas imagens será o critério para apontar uma falha de procedimento. Um efeito sensorial de um indivíduo que, tomado como universal no texto (o espectador, o público), torna-se uma verdade da percepção coletiva. Há ainda os critérios morais e políticos, onde se pressupõe uma maneira correta de se enfocar o ser humano, a sociedade e alguns assuntos, que, se contrariada, volta-se contra quem desrespeitou o código da correção de atitudes cinematográficas. Imagens de negros, homossexuais, mulheres e pobres são patrulhadas, de modo a se averiguar a correção da representação. Em alguns casos, critérios morais ou políticos misturam-se ao impressionismo, ou ambos misturam-se a análises mais detidas, criando uma zona de contaminação mútua entre os procedimentos, com maior ou menor êxito na relação entre texto e obra.

O que não se pode negar é que, diante da multiplicidade de imagens e sons, de posições de câmera, de alterações de luz, de tempo dos planos, de tempo dramático, de frases ditas pelos atores e de movimentação destes pelo espaço, o crítico têm um desafio. Enorme, aliás. Como separar as evidências de uma obra, sem nenhuma intervenção interpretativa, para extrair dela um discurso ou se empregar um discurso nela (num texto já modificador dessa obra)? Jacques Aumont afirma em A Estética do Filme (1984), por exemplo, que há uma zona de percepções visuais e sonoras, zona essa de especificidades da linguagem, que escapa à transposição para a escrita. Na edição de julho de 1970, número 222, Roland Barthes antecipava essa reflexão: “O fílmico é o que não pode ser descrito, é a representação que não pode ser representada. O fílmico começa onde termina a linguagem”.

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Saindo do geral para o específico, percebemos, em alguns críticos, critérios mais cristalinos, não sem certo ar de decreto (“o que pode”, “o que não pode”). Nesses casos, sabemos, pelo próprio texto, o que se defende (como cinema). Essa defesa costuma acompanhar as análises e os julgamentos. No início de Phillipe Garrel, Cinema Vulcânico, assinado por Ruy Gardnier na Contracampo, edição 87, temos um exemplo dessa transparência. Ao desvalorizar filmes nos quais se costumar colocar a etiqueta “drama de sentimentos”, justamente por esses filmes não se abrirem aos sentimentos e ficarem presos a esquemas de funcionalidades, Gardnier destaca a incapacidade ou dificuldade de se explorar a riqueza de situações em si: “Curioso mecanismo do cinema, ou pelo menos de uma determinada disposição de ver cinema (hegemônica, quase totalitária), esse que faz com que cada coisa que vemos diante da tela não seja uma coisa mostrada, mas uma coisa narrada”. E conclui que o cinema, em sua prática, ou os cineastas, em seus projetos, têm “dificuldade de isolar situações, de fazer com que uma ocasião particular tenha um peso só dela, uma existência em si, no limite até uma intransitividade”(...). 

Está claro nessas linhas de introdução do artigo que, para defender o cinema de Garrel, antes se está fazendo uma defesa mais ampla de cinema. Reivindica-se o empenho em captar o que há de único em uma experiência, sem tratá-la como ilustração de um esquema dramático, de uma idéia sobre algo, de uma interpretação qualquer – o que, em última instância, mata o momento em favor de sua conotação e “legendagem”. É quase um apelo em favor da autonomia dos fragmentos, mas uma autonomia sem ruptura com o conjunto do qual os fragmentos fazem parte. Eles só não podem existir, por essa visão, apenas em função do conjunto, mas apesar dele. Não se está em busca, no cerne dessa questão, da ausência de significados? Não de sentidos, que podem ser percebidos em uma experiência valorizada nela mesmo ou mesmo em uma operação formalista de mise-en-scène, mas de significados. Talvez haja ai uma recusa a operações dramáticas e visuais que pegam o espectador pelas mãos para lhe dar na boca o sentido das coisas, não permitindo às coisas insinuarem ou evidenciarem seus sentidos sem eles parecerem procurados. Recusa-se um cinema que ensina como ser visto. Que não ignore as fissuras estabelecidas pelo cinema moderno nas organizações de situações.

Na mesma edição da Contracampo, encontramos um artigo de Luiz Carlos Oliveira Jr, Personagem ou Mensagem?, no qual  também se detecta, sem necessidade de interpretação, o lugar de onde olha o crítico. No elogio a Querô, de Carlos Cortez, o crítico sublinha o que o filme evita: não condena os atos do personagem, não desfaz seus traços de personalidade em nome de uma tipologia rasa, não é esmagado em uma fôrma psico-sociológica pela dimensão do estereótipo, não é encalhe estético por conta do peso da tragédia. O alívio manifestado por essas características não encontradas no filme revela uma recusa a uma maneira de usar o personagem para ilustrar algo ou para fazer a narrativa simplesmente andar. Defende-se uma emancipação dos sentidos prévios e dos esquemas organizadores das experiências para evitar que o filme ensine o espectador a ler suas imagens enquanto oferta legendas explicativas. É preciso sentir os corpos pulsando, o sangue correndo e o músculo cardíaco batendo, sem que, quando a vida é vivida na tela, esteja lá para atender uma “visão”.  Dividindo os personagens em duas categorias, uma de necessitados de “justificar sua presença através de argumentos humanistas e utilitaristas”, outra de indiferentes a explicações a respeito de seu papel no filme, o autor mantém a defesa da captação da experiência de um momento como valor cinematográfico. A verdade das imagens estaria nas partes e não na soma significante dessas partes.

“É tudo no fundo muito simples. Ciro (Julio Andrade), protagonista de Cão Sem Dono, está no cinema porque está vivo. Já os personagens de Batismo de Sangue estão no cinema porque estão mortos. Quanto aos protagonistas de Proibido Proibir e Querô, cabe-lhes o caminho do meio, a zona intermediária entre o signo e o corpo – e também entre a vivência palpável e a condição de fantasmas condenados ao limbo da sociedade e do cinema.”. Oliveira Jr. deixa claro, assim, que a superioridade de Cão sem Dono em relação a Batismo de Sangue, Proibido Proibir e Querô, nasce de um personagem construtor de vida, não de um personagem-representação de qualquer coisa. Em alguma medida, se justapomos as palavras de Gardnier sobre Garrel e de Junior sobre Brant, veremos aproximações – sem, necessariamente, que Garrel e Brant sejam de uma mesma “turma de cinema” para os dois críticos. De qualquer forma, em um e outro, com tantos aspectos a serem colocados na roda, destacou-se esse: o da superioridade dos sentidos sobre as significações, das experiências sobre as operações de suas interpretações executadas pela própria obra.

No artigo Heróis Que Não Morrem de Overdose, também de Luiz Carlos Oliveira Jr., também na edição 97 da Contracampo, analisa-se as mudanças ocorridas nos filmes de ação desde os anos 80, constatando a repetição de pretextos dramáticos pouco originais, mas transformados em narrativas visuais com outros paradigmas de movimento e espaço. “É a velha constatação: um imaginário não se alimenta de assuntos, mas de maneiras, de modos de narrar. Uma criança é capaz de ouvir a mesma estória todos os dias, o que importa para ela é a experiência de ouvir aquela estória, os pequenos detalhes que se acrescentam ou se subtraem cada vez que os adultos a recontam”. Temos nas frases acima uma visão que se torna um procedimento de escrita: a abordagem das maneiras e do estilo, de como se escolhe produzir fragmentos e encadeá-los, com efeitos x ou y como meta. Os assuntos, afinal, pouco mudam. E a crítica de cinema, como se ouve ecoando no texto, deve analisar a forma.

Podemos detectar essa mesma auto-proclamação de procedimentos, claramente reativa a uma tendência de análise de enredos de parte expressiva de críticos e resenhistas (mesmo após os anos 70, com o advento da análise textual, com a “preocupação do detalhe preciso”, segundo Raymond Belour em “Le Texte Introuvable”, publicado em Analise du Film, 1979), em outros textos da mesma Contracampo. Pois essa eleição do processo de construção estética como foco central, também, não seria uma tentativa de fugir dos sentidos já dados de antemão pelo enredo? O exclusivo interesse pelo enredo não seria em parte um obstáculo para viver a experiência do cinema em plenitude sensorial, limitado pela condição de testemunha de acontecimentos fictícios, sem abertura para a fruição estética propriamente dita, para as relações de composição de quadros, variações de luz, tempo do plano?

Talvez possamos localizar essa desconfiança das operações construturas de sentido em outros textos recentes na crítica brasileira, sobretudo na Contracampo e na Paisá (mas também aqui na Cinética), o que é uma marca distintiva de um segmento em sintonia, cuja maneira de ver e  analisar o cinema passa pela exposição de superfícies e não de significações, com especial ênfase na forma e nos elementos significantes, não necessariamente nas significações produzidas por esses elementos. Talvez, insisto, no sentido, não na significação. Poderíamos correr o risco de sermos seduzidos a vincular essa atitude crítica à uma geração – em especial a surgida nos textos nos anos 90, formada com a ajuda fundamental do videocassete, do DVD e do emule, que facilitou a chamada “precisão do detalhe” e um contato mais rigoroso com as operações de mise-en-scéne, pois substituiu a memória visual e estética pela verificação das evidências.

Uma verificação tende a nos fazer pensar em revelações e investigações para se tirar o véu das superfícies e encontrar como as superfícies são criadas pela soma das opções cinematográficas. Nem sempre é o caso. Tomemos um trecho de um comentário do blog Canto do Inácio sobre Meu Maior Amor (“Um Plano de Mark Robson”, postado em 29 de abril de 2007), no qual o crítico Inácio Araújo faz a seguinte descrição comentada: “Aí há uma cena em que está uma funcionária sentada, datilografando. Ao fundo, entra a Susan Hayward e fala com ela. A funcionária encaminha Susan a falar com a superiora, dirigindo-se à esquerda do quadro. Susan vai atrás dela e a câmera a acompanha em panorâmica, ela se aproxima, o quadro se fecha até o PP (plano próximo) dela. Ela passa e o quadro se abre novamente. Vemos então uma ampla sala. No fundo, à esquerda, uma senhora (a quem Susan procura), no centro, Susan, de costas. À direita, bem no canto, a funcionária que a levou até lá”. Inácio conclui: “Cinema, no fundo, são aproximações e distanciamentos. Isso vale para qualquer parte do mundo”.

Vejamos nessa frase o que mais importa nesse artigo: cinema são aproximações e distanciamentos. Nenhuma interpretação do plano, nenhum sentido daquele momento para o entendimento do percurso da personagem, ou para a relação entre essa personagem e o mundo habitado por ela – apenas uma relação de movimentos, primeiro dos corpos, depois da câmera em relação aos corpos, a seguir da câmera em relação ao espaço, sem precisar se “a abertura do plano” é um traveling de recuo ou um corte de um plano próximo para outro mais distante, mas, em quaisquer dos casos, restringe-se a relação com a imagem por seu movimento (o do quadro e dentro do quadro).

Não haveria nessa passagem, mais uma vez, o elogio da emancipação do fragmento? A descrição de uma seqüência, como estratégia de afirmação de uma fluidez na mise-en-scène de Mark Robson, substitui o utilitarismo das partes, que não está lá para atender ao conjunto denominado obra, mas para, antes de mais nada, existir em si mesma, naquele momento. Os filmes reivindicados nesses textos, supõe-se, seriam reuniões de momentos respeitados pelo diretor, não de momentos a serviço de outros momentos.

A partir disso, me pergunto se não estaria em parte nessa dinâmica de olhar de um segmento da crítica brasileira uma das explicações possíveis para o reformismo canônico contido na eleição dos 20 melhores filmes brasileiros promovida pela Paisà? É expressiva a substituição de autores e obras vinculadas direta ou indiretamente ao Cinema Novo pelos autores e obras vinculadas direta ou indiretamente à etiqueta eventualmente estigmatizante do Cinema Marginal. Não haveria nessa espécie de declaração de percepção de um grupo de críticos, sobretudo os mais próximos da zona de influência da Contracampo (construída já a partir de respeitáveis dez anos de existência), um elogio da crise da teleologia da narrativa e um questionamento sobre a teleologia do Cinema Novo? A dissolução ou a dissonância de significados, não necessariamente de sentidos (tomemos Bang Bang, marginal preferido na Paisá), parece atender melhor o cinema valorizado e de certa forma reivindicado por esse segmento da crítica.

Continuamos à frente...

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