conexão
crítica Conceição:
questão crítica por Cléber
Eduardo Parte 1: Impressos e eletrônicos:
visões díspares
Poucos filmes brasileiros recentes tiveram reações
tão díspares, mas ao mesmo tempo tão sintomáticas dos atuais padrões de se julgar
e de se aproximar do cinema, quanto o filme coletivo-universitário Conceição
– Autor Bom é Autor Morto. Pode-se constatar como regra geral que, se nos
sites os juízos foram predominantemente positivos, apesar de sustentados
por visões que nem sempre falam a mesma língua, as resenhas dos impressos manifestaram
desprezo, quando não ignoraram o filme por completo, como em O Estado de S. Paulo
– que optou pelo silêncio e decretou nessa ausência seu veredito. É
preciso arrancar os véus e assumir as posições discursivas. A adesão em diferentes
medidas a Conceição nos sites e revistas eletrônicas, devem pensar alguns
(ou muitos), teria como estopim o fato de um dos cinco diretores, Daniel Caetano,
ser também crítico da Contracampo, a mais longeva revista eletrônica brasileira
de reflexão e pesquisa de cinema. A maioria das resenhas e críticas disponibilizadas
na internet é assinada por pessoas próximas em diferentes medidas do crítico/realizador.
Pode imediatamente se concluir, somando a com b, que tudo ficou no clubinho. Já
os resenhistas, comentaristas e emissores de opiniões dos impressos parecem unânimes
em ver o filme como um objeto alienígena sem lugar hoje no cinema ou ao menos
no circuito de exibição. Um deixa claro em suas palavras que o filme não deveria
existir (Miguel Barbieri Jr., no suplemento Veja São Paulo). Ao afirmar que o
filme, co-produzido pela Universidade Federal Fluminense, deveria ter ficado na
faculdade, reivindica o poder de, em última instância, decidir quais filmes
podem, por seu critério, ser lançados ou não. Se os realizadores tomarem a mesma
atitude, irão reivindicar o poder de decidir, segundo seus critérios, quais críticos
podem ou não publicar. E muitos poderão concluir que, assim como o filme deveria
ficar na faculdade, alguns críticos precisam voltar aos bancos escolares. Não
se trata de patrulhar os critérios alheios quando não se concorda com eles, mas
de lembrar constantemente que, se diretores e filmes são vidraças onde são atirados
pedrinhas e tijolos, os críticos também são instâncias discursivas e suas críticas
uma narrativa, muitas vezes fragmentada e superficial como muitos filmes assim
definidos por eles. Em suma, são pedras, mas, também, vidraças. Ao se pronunciarem,
abrem-se ao julgamento. Outro “crítico impresso” (Gustavo
Leitão, em O Globo) acha o filme fragmentado demais para atrair algum interesse.
Leitão se “satisfaz” assim com outro poder: o de decretar quais filmes devem ser
vistos – uma vez que, como não se conseguiu impedir sua exibição, só resta tentar
inviabilizar a freqüência. Quando o jornalista de O Globo afirma que a fragmentação
inviabiliza qualquer interesse, está se referindo ao seu interesse específico
e pessoal, ao interesse da universalidade dos pagantes de cinema no Rio de Janeiro
ou se refere ao interesse dos leitores de O Globo? Tanto
a sentença sem argumentação de Barbieri Jr. quanto a de Leitão parecem semeadas
pela mesma matriz: a recusa a uma ameaça ao narrativo pautado pela noção de unidade
das partes. Barbieri Jr. classifica o resultado como “híbrido patético de drama
social, comédia e terror trash”, localizando onde está o híbrido, mas se
calando sobre a localização do “patético”. Seria patético porque é híbrido ou
porque sabota convenções? Não seria esta uma forma de proteger o cinema dos atentados
ao bom gosto, ao bem feito e ao padrão de mercado? Essa visão jogaria no lixo,
se coerente fosse, parte da produção brasileira: o 1967/1973, que engloba os filmes
de Julio Bressane e Rogério Sganzerla (na Belair, sobretudo), assim como os de
José Mojica Marins e Ozualdo Candeias, assim como os de Carlos Reichenbach e algumas
experiências de Glauber Rocha (Câncer, especialmente). Não haveria uma
recusa aos desdobramentos do cinema moderno, com suas inevitáveis e premeditadas
fissuras na noção de organização de sentidos e de encadeamento de imagens? Não
seria um veto ao caminho da crise interna da narrativa? Na frase final de Barbieri
Jr., ele afirma haver influências de Julio Bressane, sem esboçar quais seriam,
e supõe que os realizadores, quando estavam na faculdade, cabularam as aulas de
roteiro. Vemos aqui o x da questão, em termos de análise.
O roteiro é tratado como base de tudo, como alma da obra, e, se é ferido em seus
princípios clássicos, nada presta porque o sentido está comprometido. Barbieri
Jr. só esquece de notar que, na base discursiva do filme, o roteiro está em xeque,
mesmo antes de existir. Não se está aqui questionando a possibilidade de se questionar
e se atacar Conceição. Questiona-se uma noção de cinema empregada em um
filme claramente avesso ao emprego dessa noção em suas imagens. Também não se
está afirmando com isso que Conceição vincula-se às vanguardas ou às dissoluções
da narrativa. Não estamos diante de uma tomada de partido anti-teleológica, que
procura bagunçar as unidades, quebrar a noção de centro e núcleo dramático-narrativo,
para somente investir no fragmento e na fragmentação. Há uma unidade, sim, em
Conceição, e, para ignorá-la, é necessário abolir, simplesmente, seu ponto
de partida: a mesa do bar em torno da qual todos os episódios se desenrolam. Tudo
o que interessa, na conceitualização do filme, passa-se no bar. É em torno da
mesa e das cervejas que pululam argumentos diversos de cinema popular, que se
evidencia a procura por comunicação com o público de uma geração de realizadores
sem preconceitos com o cinema de gênero, que se mostra a dificuldade de se chegar
a um consenso sobre os caminhos para se fugir do gueto. Também é em torno da mesa
que os personagens reagirão a seus criadores, trazendo para esse núcleo organizador
das demais narrativas outra das questões centrais de Conceição. Esse núcleo
não reduz o filme, porém, a uma obra cuja alma é o roteiro, mas, sim, um conceito
e uma proposta, cuja realização tem como força outras instâncias (a mise-en-scéne,
a montagem). José Geraldo Couto foi o único crítico de impressos
a minimamente abrir-se a uma relação, qualquer que fosse, com o filme. Em texto
publicado na Folha de S. Paulo, considera-o irregular, mas, ao vinculá-lo aos
primeiros filmes de Sganzerla e considerá-lo um corpo estranho no cinema brasileiro
dos anos 2000, legitima, sem empolgação evidente, a proposta do filme – e, no
pé do texto, lhe dá uma cotação Bom. O elogio de José Geraldo, mesmo sem usar
essas palavras, é à rebeldia do projeto. Ela pode exagerar aqui, ser mais feliz
ali, mas, por estar no contra-fluxo, solicita alguma defesa. Assim parece, lendo
a resenha. Enquanto isso, na internetJá
nos sites as defesas, que podem parecer uníssonas para quem as leu de raspão ou
não as leu simplesmente, são bastante peculiares. Há quem valorize o escracho,
a autoralidade sem autor, o padrão técnico, alguns efeitos narrativos, as referências
de cinéfilo e o senso de unidade na fragmentação, mas há também quem, sem deixar
de elogiar, destaque a fragmentação, o nonsense e um registro cifrado,
que seria um sinal de cultura ou exibicionismo de estudantes de cinema. Não se
explorou nesses textos o aparentemente óbvio núcleo de Conceição. Se a
soma dos fragmentos é sobre alguma coisa, é sobre a impossibilidade de se chegar
a um consenso sobre qual cinema brasileiro a ser feito, tema do botequim, e sobre
a responsabilidade dos realizadores pela vida de personagens usados quase somente
para entreter uma platéia. Também é possível relacionar
a morte de “um autor”, ou ao menos da subjetividade expressa em estilo e temas,
com as teorias a esse respeito de Mallarmé, Roland Barthes, Michel Foucault e
Raymond Bellour – não necessariamente em diálogo fino umas com as outras, mas
próximas ao situar a autoralidade nos limites do discurso textual ou fílmico,
sem levar em conta quem controla ou está por trás da organização narrativa/discursiva.
Um dos aspectos mais interessantes de Conceição está no fato de idéias
virarem cinema, com montagem e mise-en-scéne, sem precisar passar pelos
processos de roteiro e filmagem, levando-nos a constatar que os filmes ali estão
prontos antes de serem feitos e, justamente por isso, acabam por jamais se abrir
a seus personagens e a condená-los a destinos x ou y antes deles existirem. Mas
existem. E reagem a criadores acima da criação. Alysson
Oliveira destaca na primeira frase, em sua resenha no Cineweb, a aversão do filme
a classificações simples. Como aceitar seus variados códigos e suas múltiplas
“re-codificações”? O resenhista acredita que Conceição reflete a base da
lógica cinematográfica. O que filmar? Como? Para quem? Alysson vê hoje um racha
no cinema brasileiro entre as propostas de autor e as comprometidas apenas com
a venda de bilhetes. No final da resenha, depois de uma sintética e precisa descrição
do enredo, ele adere ao resultado, vendo nele uma clara opção pelo cinema do autor
vivo. Dos autores, no caso. Em sua primeira frase sobre Conceição,
no quarto parágrafo de seu texto escrito durante a Mostra de Tiradentes, após
três parágrafos apresentando Daniel Caetano, Cid Nader salienta a desconexão entre
as frentes narrativas. A ausência de costura, acredita Nader, deve ter significado,
mas, para chegar a ele, será preciso escarafunchar, porque o sentido estaria escondido.
Cid Nader parte desse pressuposto, segundo o texto, por ver o filme como obra
de referências, realizada por quem pensa o cinema, por quem o estudou na universidade
e não abre mão da teoria na hora da prática. O resenhista leva em conta as informações
externas ao filme para tentar se relacionar com ele e com os sentidos ocultos
jamais decodificados. No mesmo site, César Zamberlan, comparando
Conceição a Saneamento Básico, faz rara menção a Pirandello, matriz
óbvia e ignorada nos demais textos, mesmo sendo creditada nos agradecimentos do
filme. O texto é bastante elogioso, centrado na superação de dificuldades com
criatividade. Em determinado momento, porém, esbarra-se na dicotomia, inclusive
incoerente com o conceito de Conceição. Zamberlan propõe uma divisão,
de passagem, entre “imaginação” e “verdade”. Esses são conceitos movediços e,
sem sabermos o que é imaginação e verdade em uma ficção, que não deixa de ser
a busca da verdade da imaginação, não há sentido nessa dicotomia.
Talvez essa soma de reações a um filme realmente
estranho na relação com seu contexto nos informe menos sobre o filme e mais sobre
os segmentos do “corpo crítico” hoje no Brasil, composto de críticos, jornalistas,
resenhistas, cinéfilos e emissores de opinião, eventualmente julgando com valores
e critérios opostos, freqüentemente encarando o cinema como manifestação cheia
de regras e limites, diante dos quais qualquer desrespeito merece os confetes
ou os ovos. Não se pode afirmar que os atiradores de ovos,
ao proibirem ou repudiarem manifestações a partir do cinema moderno, estejam com
um palavreado historicamente enterrado, ainda agarrados a noções como unidade
e clareza, que pareciam perder sentido já nos anos 60. Se há um conservadorismo
aparentemente caduco nessas posições, que reproduzem na linhagem histórica (mas
note-se que sem o mesmo nível de argumentação e programatismo) as matrizes críticas
de Moniz Vianna, B.J. Duarte e Francisco de Almeida Salles, críticos ativos nos
anos 50, esse conservadorismo ainda se faz presente de maneira aguda e crônica
em nosso pensamento cinematográfico (e na ausência dele).
Parte
2: Conceição na Contracampo, na Paisá e na
Cinética
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