conexão crítica
Possuídos: um bug atrás da orelha da crítica
por Paulo Santos Lima

E, por acaso, Friedkin saiu para, assim, retornar?

William Friedkin foi a pauta de boa parte das resenhas da imprensa sobre Possuídos (Bug), seu mais recente filme. Friedkin, o homem, seu percurso como cineasta, como fazedor de filmes, e não bem a “obra Friedkin”. Essas citações foram usadas, em alguns casos, para legitimar as qualidades de Possuídos, comparando-o com sua fase “bege” (termo meu, ainda que discorde), entre O Exorcista (73) e este filme de 2006.

Ainda que o filme, em si, tenha sido discutido, o norte dos textos foi, grosso modo, o da travessia eclipsada de Friedkin: o grande cineasta dos anos 70 renasce das cinzas com Possuídos. Há, nisso, um certo sensacionalismo (no sentido literal do termo, “criar sensação”) sobre um fato corriqueiro com as mudanças históricas do sistema de produção cinematográfico norte-americano e, mais precisamente, sobre um cineasta que, diferentemente de contemporâneos seus como John Schlesinger e Arthur Penn, manteve-se em grande atividade, entre cinema, teatro e TV, fazendo alguns filmes artisticamente notáveis, como Cruising, Viver e Morrer em Los Angeles e Caçado. Perto do final de seu texto, no site CinemaScópio, Kleber Mendonça Filho comenta dramaticamente que “Nos últimos 20 anos – Viver e Morrer em Los Angeles, de 1986, foi seu último filme realmente digno de nota -, ficou no ostracismo. O que teria acontecido com Billy Friedkin?”. E mais “Ele volta agora pisando fundo no acelerador (...)”. Mas, será que volta? De onde? Ele não se manteve no cinema esse tempo todo?

No JB Online (extensão virtual do diário carioca Jornal do Brasil), em texto que elogia a boa transposição da claustrofobia do texto teatral para o cinema, o crítico Mario Abbade inicia assim: “Depois de passar anos sem acertar a mão, o cineasta William Friedkin (O exorcista e Operação França) realiza em Possuídos um dos melhores filmes do ano”. O que seria “anos sem acertar a mão”? Ou mais: o que é “acertar a mão”? Filmar bem? Friedkin sempre filma satisfatoriamente bem. Emplacar sucesso de bilheterias? Ter aclamação do público? Ou da crítica? Ser homenageado em festivais estrangeiros? Afinal, se os demais filmes de Friedkin não foram marcos canônicos como Operação França e O Exorcista, isso não desmobiliza a construção estilística de tantos outros de seus filmes posteriores, sobretudo Sorcerer e Viver e Morrer em LA.

Cássio Starling Carlos, também na Folha de S. Paulo, é mais sutil (e talvez ambíguo) sobre essa imagem de Friedkin retornando do ostracismo e de seu punhado de filmes esquálidos: “Possuídos marca seu retorno à grande forma com um filme de baixo orçamento, feito à margem da indústria, mas que devolve ao cineasta um peso que há muito fora confiscado”.  E mapeia de forma concisa e precisa algumas das características do cineasta, lendo Bug sob a luz do que é cinema de Friedkin, mas também do que pode sugerir como filme autonomamente.

O retorno de Friedkin é citado, também, por nosso colaborador Ricardo Calil, em dois textos. Na Revista SET, ele afirma: “Diretor dos clássicos Operação França (1971) e O Exorcista (1973), o diretor americano William Friedkin ficou anos sem emplacar um grande filme”. Já no seu blog, ele detalha mais, comentando: “E então, por razões obscuras, sua carreira entrou em uma longa fase de decadência, com uma série de filmes pouco memoráveis” para, no parágrafo seguinte, aplaudir que “Uma das grandes notícias do ano no cinema é a volta por cima de Friedkin com Possuídos”.

Se para Calil o motivo é obscuro, Marcelo Hessel, do site Omelete, tem resposta pronta sobre a suposta decadência de Friedkin: “Depois de dirigir O Exorcista em 1973, William Friedkin – que já havia feito seu nome dois anos antes com Operação França – não realizou nada muito digno dos cânones. Filmes como Caçado evidenciam o talento do diretor no manejo da câmera e o seu domínio do espaço cênico, mas o sucateamento progressivo de roteiros em Hollywood não fez bem a Friedkin. Não é sempre que se transforma água em vinho”. Se Hessel é bastante vago sobre o que seria esse “nada muito digno dos cânones”, ele é bastante seguro naquilo que acha ser o problema do diretor.

Em texto nesta Cinética, Cléber Eduardo me parece mais preciso sobre o problema de Friedkin e, também, de seus contemporâneos, que é um sistema de produção que recrudesceu no seu modus operandi a partir dos anos 80 e não acolhe certos tipos de cinema. Um problema que o mesmo Cléber, em conversa, enquadrou como sendo inerente a história do cinema americano – algo dito pelo cineasta André Téchiné num debate entre críticos, nos anos 70. Ali, ele dizia que todo avanço que ocorreu no cinema americano repercutiu em “mortes” de certos cineastas, desde o advento do som até a mudança de política dos estúdios hollywoodianos, já entre os anos 40 e 50, primeiramente.

Por um viés, a menção à figura de Friedkin nesses textos é mais que saudável, na medida em que se tenta, melhor ou pior, historicizar o cinema de Friedkin. No entanto, seja pelo espaço exíguo dos impressos ou por uma formatação editorial conformada com a idéia de que leitor não despende tempo para longas leituras, deixou-se de retornar aos filmes de Friedkin, vistos sob os olhos de hoje, ou, mantendo-se no presente; discutir o sistema de produção ou a abordagem reducionista que a mídia faz sobre os objetos do mundo (o “tosco” Caçado, por exemplo, é um longa que merecia melhor atenção, mesmo se para ser alvejado).

Luiz Carlos Merten, de O Estado de S. Paulo, em seu blog, confirma essa importância revisionista. Ele diz que “tinha Friedkin na conta de uma daquelas decepções do cinema de Hollywood. Achava que ele havia sido superestimado, agora acho que, na verdade, passado o impacto inicial, talvez o Friedkin tenha sido subestimado, isso sim. Tenho preguiça de ler, mas vejo que os franceses – e Cahiers du Cinéma em particular - têm o Friedkin em alta conta.” Elogioso quanto a Bug, Merten acaba, nessas linhas finais, mesmo que mantendo suas generalizações, problematizando o julgamento feito acerca do diretor.

No entanto, alguns outros textos desprezaram essa idéia de retorno. Filipe Furtado, editor da Revista Paisà, define em poucas palavras em seu blog Anotações de um Cinéfilo o que seria o cinema de Friedkin, mas prefere ficar no filme, manifestando admiração pela sinceridade da fita. O mineiro Marcelo Miranda, no site Filmes Polvo, também não menciona essa idéia de “retorno de Friedkin ao grande cinema”, aproveitando a sorte do espaço ilimitado da internet para discorrer mais sobre a obra do diretor, definindo seu cinema como “de obsessões”. Faz reverência, assim, à idéia de autor, e ao ampliar o comentário sobre os temas friedkinianos, o escrito de Miranda renega ainda mais a idéia de “renascimento”.

Leonardo Cruz, no blog Ilustrada no Cinema, faz um texto sobre o resistente cinema Gemini, na região da av. Paulista, em São Paulo, aproveitando sua visita à sala para falar de Possuídos, o filme que assistiu lá. Apesar da fertilidade da situação (Gemini e Friedkin, que convida a uma analogia entre o cinema veterano e o veterano cineasta, ambos mostrando sinal de vida), Cruz poupa seu leitor de qualquer comentário do tipo, e se centra no prazer da experiência de se ver Possuídos no Gemini. Um texto bem preciso em seu propósito, e descontaminado dessa visão melodramática do percurso de Friedkin.

Houve ainda alguns que não citaram William Friedkin além do seu nome e obra de referência (quase sempre O Exorcista), assim como tampouco o tal “retorno das sombras”. Miguel Barbieri Jr, da Veja em São Paulo, e um texto info-crítico no site G1 assinado pela Reuters, sem nome do escritor, são dois exemplos de escritos que ficaram no filme.

Bug e Cronenberg

Curioso é que, pelo menos três textos ligaram Possuídos ao nome de David Cronenberg: Christian Petermann, no Guia da Folha (outro crítico que também reforça a idéia de que Friedkin não se igualou ao que fizera em Operação França e O Exorcista – salientando, inclusive, a irregularidade de sua obra), diz que o filme é “um exercício de paranóia e autodestruição remetendo assim, respectivamente, à filmografia de George Romero e à de David Cronenberg”. Já Cássio Starling conclui assim sua resenha: “Nessa aventura de certo risco para os padrões do cinema americano, Friedkin joga o espectador numa experiência assombrosa que nada fica a dever ao gênio maligno de Cronenberg”. A citação, por si, meio solta ao final do texto, pode ser multifuncional, mas de modo algum gratuita. Por que Cronenberg?

Leonardo Mecchi justifica, aqui nesta Cinética, a inclusão de David Cronenberg. “Há ainda em Possuídos uma forte e ameaçadora relação com a tecnologia – seja na paranóia de Peter diante de qualquer tipo de maquinário (...) Entretanto, como tal reconfiguração se dá, em última instância, por uma espécie de auto-flagelação dos próprios personagens, a aproximação com o cinema de Cronenberg se dá tanto por A Mosca quanto por Spider, já que em Possuídos a batalha a ser travada se encontra na mente de seus personagens”.

Mas será a tecnologia uma questão em Possuídos? Ela me parece mais uma presença, apenas, que está lá junto com algo bem maior: o rosto dos atores, a paranóia, o grosso caldo de informações dramatúrgicas (gestuais, mas também e sobretudo verbais) sobre a nóia e solidão daquelas pessoas — Ashley Judd nos é apresentada menos sendo alguém solitária e mais sendo alguém sozinha sob medo de uma ameaça externa, ilustrada pelo telefone que toca sem ninguém nada dizer do outro lado da linha. A tecnologia, assim, não é a ponte entre Bug e o cinema de Cronenberg. Aliás, que cinema de Cronenberg é esse?

Os personagens de Possuídos têm um receio assombroso sobre algo que, pelo menos no campo da imagem do filme, é abstrato, talvez inexistente, apenas sugestões ambíguas, que o filme sempre mantém sob dúvida. Nunca vemos os tais insetos e são dois planos, apenas (o da cena de sexo e o pós-extração do dente), que vemos algo que parece de um mundo fora daquela diegese: inseto de frente e grande punhado de larvas. Já os personagens do cinema de David Cronenberg estão longe de qualquer receio ou acomodação. Pelo contrário, eles são empreendedores, seres que avançam para uma dimensão além da normalidade, buscando. Poderíamos compará-los aos heróis de Werner Herzog, cujo conhecimento do mundo é mais importante que a integridade física e mental.

Os personagens de Cronenberg buscam; os de Bug, recolhem-se. Em Cronenberg, há a revelação (em Crash, em A Mosca e em Gêmeos, por exemplo, onde se descobre uma dimensão outra do ser humano); em Bug, eles escondem-se. Em Cronenberg, há a aceitação deste mundo a partir de uma nova reformatação do “estar no mundo”; em Bug, há a recusa ao mundo, e que se dá através de uma aniquilação física cheia de lamentos. Sobre o corpo: enquanto o grosso dos filmes de Cronenberg tem no físico um espaço exemplar e valioso, servindo de ponto de partida para se chegar a coisa outra (A Mosca), Bug tem no corpo um cuidado clínico, sagrado, intocável (o maluco inclusive não transava há séculos e, ao final, o casal percebe que o sexo foi o momento da contaminação e disseminação da peste em ambos).

Na imagem, Cronenberg é um cineasta da revelação. Em A Hora da Zona Morta, as alucinações do personagem de Christopher Walken estão deslocadas não pela razão, mas sim pelo tempo, pois elas estão para acontecer, ele as prevê, e o filme as mostra para nós. Mesmo em Spider, a construção do delírio mental do rapaz se nos ludibria, porque, enquanto evidência na imagem, ela existe, aquela mãe está viva etc. Bug é um filme do escamoteamento, no qual os corpos ajudam a manter a ameaça ambígua. Bem diferente de The Brood, Scanners e Crash, que revelam o potencial extra-natural humano. Até mesmo M. Butterfly desvela o escondido (o sexo do travesti John Lone) para, no final das contas, com esse corpo bi-volt, revelar algo escondido do hetero Jeremy Irons.

Talvez Videodrome e The Naked Lunch sejam mais próximos daquilo que poderia ser uma ponte com Possuídos, uma vez que seus personagens mergulham numa extrema loucura. Mas, ainda assim, as alucinações de James Wood e de Peter Weller são causadas por coisas bem concretas: o vídeo (monitor, as imagens, no primeiro) e pelo uso de drogas pesadas e produtos tóxicos no segundo. Vale o parênteses dizendo que o corpo do homem, guiado pela mente, sofrerá ajustes num mundo tecnológico-químico-industrial (algo mais desenvolvido em eXistenZ, com o mundo virtual da informática levando o homem a uma condição que remete metalinguisticamente à idéia de narrativa etc).

Nisso, nesse lance da tecnologia, Leonardo Mecchi até avistou uma ponte possível, mas o modo como a imagem se constrói e a instância narradora passam longe das similaridades. Os filmes de Cronenberg, enfim, sempre tornam “reais” esses itens que interagem com o ser humano (por existirem na tela, presenças evidentes como imagem no quadro). Em Bug (e também no cinema de Friedkin, de modo geral), ainda que seja obra bastante física (na idéia de cinema físico, que trabalha nas evidencias físicas dos objetos em cena), o tumulto é mental, habitante das profundezas do personagem. É por via da psicologia que o inferno se constrói para quem assiste a seus filmes, e, como Friedkin é um grande homem do cinema, o uso do som, dos cortes e dos espaços se faz imprescindível.

A citação a Cronenberg gerou uma larga volta (em torno de Cronenberg) para, ao final, voltar ao cinema de William Friedkin. Mas foi impossível, nos textos, rodar tantas milhas e, na curta estrada possível da imprensa, preferiu-se recair sobre uma idéia (a da revigoração do cineasta) que, relativa quanto à análise parca de seus outros filmes e redundante e destinada a genericamente todos os outros homens de cinema, traz muito pouco de luz sobre a obra de um dos grandes cineastas norte-americanos ainda vivos.

Setembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta