2em1 Da
dificuldade dos "grandes temas" À
Margem do Concreto, de Evaldo Mocarzel (Brasil, 2005); Pro Dia Nascer Feliz,
de João Jardim (Brasil, 2006) por Eduardo
Valente
Educação e moradia. Não se pode negar que João Jardim e Evaldo
Mocarzel (que tem construído toda uma carreira no documentário se dedicando aos
“temas importantes”) foram corajosos ao escolher como temas de seus documentários
recém-lançados nos cinemas brasileiros simplesmente dois dos mais abrangentes
temas-problemas do Brasil – hoje e sempre. Corajosos, principalmente, pela abundância
de imagens e discursos jornalísticos sobre estes (e outros) temas que vivemos
atualmente, em meio à multiplicação de “canais de notícias” e programas (sensacionalistas
ou informativos) de cunho de reportagem. Há algo de novo a ser dito? Há algo de
novo a ser filmado? A julgar pelo filme de João Jardim (fotos
acima e abaixo), não muito. Esquizofrenicamente dividido entre querer ser um perfil
de alguns personagens (onde acaba estabelecendo uma relação um tanto problemática
com alguns deles, como a menina do interior nordestino que abre e fecha o filme
sob uma aura simbólica transbordante) e claramente usar a parte para falar do
todo (e se resta alguma dúvida sobre esta intenção do filme, basta ver o uso no
final das imagens de vários jovens em locais diferentes “encarando” a câmera/espectador,
como se a dizer “essa também é nossa história”), o filme poucas vezes consegue
encontrar um equilíbrio entre estes dois tipos de discurso que chegue de fato
a cativar uma atenção diferenciada do espectador. De
fato, apenas em um momento o filme se encontra por completo: nas entrevistas das
alunas da escola de classe alta paulistana. Ali sim o pacto de confiança entre
entrevistador e entrevistadas parece se estabelecer de maneira mais solta, mais
fluida, e conseguimos ver aquelas meninas como algo mais do que símbolos-sintomas
de algum problema maior. Ali, durante aqueles vinte minutos do filme, conseguimos
deixar de lado as “nobres intenções” que o projeto desfila desde o começo, o esteticismo
à toda prova de sua aproximação com o mundo do Nordeste ou da periferia (onde,
tendo em vista sua parceria no filme anterior de Jardim, Janela da Alma,
a grande surpresa é quando descobrimos nos créditos finais que NÃO se trata de
uma fotografia de Walter Carvalho), e simplesmente sentamos para escutar algumas
jovens que se permitem uma abertura mais fútil – e, até por isso mesmo, mais profunda.
O que o filme parece querer nos dizer, ainda que subrepticiamente, é que entre
os menos favorecidos não há espaço para a futilidade existencial do indivíduo,
frente ao quadro de miséria, dificuldades, violência. Lá, o ser humano pode ser
apenas o “guerreiro”, o “problema”, a “prodígio” – e não apenas mais uma. Velho
problema de consciência brasileiro, tão compreensível quanto incômodo. Diante
destes dois problemas que os temas parecem impor (“socialização do indivíduo”
e ausência de novidades), o filme de Mocarzel acaba sendo bem melhor resolvido
narrativamente. Em parte, por sua opção de um trajeto linear e muito mais centrado:
finca bandeira num determinado grupo de pessoas, a quem dará tempo para falar
e tempo de tela para que se tornem mais do que apenas “líderes de movimentos sociais”.
Conseguimos nos aproximar daquelas pessoas e de suas histórias, e no caminho que
fazem da teoria para a ação há um paralelo funcional entre suas vidas e a estrutura
do filme que funciona bastante bem. Finalmente,
há um segundo aspecto fundamental: na sua bastante comentada seqüência da invasão,
Mocarzel nos dá, de fato, imagens que ainda não tínhamos visto, que os meios jornalísticos
não conseguiram prover dentro do seu tempo e do seu enfoque. Lado a lado com os
invasores de um prédio, Mocarzel (e seu montador, Marcelo Moraes) compõe uma seqüência
de ação absolutamente coesa e perturbadora, onde as idas e vindas das simpatias
e sensações do espectador são notáveis. Na opção de deixar que esta seqüência,
inconclusa, feche o filme, Mocarzel dá uma clara “jogada para a galera”, com considerável
poder de manipulação, mas cujo efeito é inegável: a compreensão de que não é possível
um discurso pronto, distanciado, finalizado sobre uma questão como a dos Sem-Teto.
Há nesta jogada final de Mocarzel um “destempero” (ainda
que calculado como efeito) que falta na elegância de tratamento de Jardim, que
parece planar sobre o problema da educação, jogando sobre ele um olhar simpático
e compreensivo, mas estranhamente distanciado e bem resolvido – e nisso, quase
niilista. Mais do que “comover”, o filme de Mocarzel consegue minimamente mover
alguma coisa, fazer ver algo conhecido de uma maneira diferente – e, neste movimento,
há mérito indiscutível. Antes o estranhamento discutível do que a placidez lúcida
de uma constatação “do bem”. editoria@revistacinetica.com.br
|