Conceição - Autor Bom é Autor Morto,
de André Sampaio, Cynthia Sims, Daniel Caetano,
Guilherme Sarmiento, Samantha Ribeiro (Brasil, 2007)
por Francis Vogner dos Reis

Acender as velas...

Fazer filmes e escrever críticas é naturalmente topar com a necessidade de fazer o novo, de não repetir o que já foi feito à exaustão, ou pelo menos, responder à ânsia de uma busca por uma outra maneira de dizer e mostrar as coisas. Não que esse desejo seja via de regra, fim último de trabalhos assinados pelos críticos e cineastas. Alguns se contentam em copiar, outros se repetem à exaustão e muitos sequer se questionam sobre seus procedimentos.

Partindo disso, é bom dizer que escrever sobre Conceição – Autor Bom é Autor Morto é um perigo, sobretudo porque é tentador explorar um vocabulário acessório: transgressão, estética do deboche, mau comportamento, exercício de linguagem; poderia também argumentar sobre suas estratégias narrativas “não-lineares”, ou mesmo buscar referências no passado, falar de “resgate” de um tipo de cinema que foi perdido pelo caminho na história do cinema brasileiro e que hoje não tem mais lugar etc, etc e etc. Não que muitas dessas coisas não sejam verdades; são evidências e ponto final. Só que de tão evidentes, como diria um certo amigo, viraram “carne de vaca” – ou seja, lugar comum, que pode resvalar facilmente na irrelevância mais pura e simples (travestida de opinião especializada) e numa retórica passadista.

Ainda na ilusão da originalidade crítica, o segundo perigo em se tratando de Conceição é aderir ao gesto absolutamente honesto, corajoso e autêntico (visto em suas duas melhores críticas) que é a aproximação do filme em primeira pessoa, fazer dele um assunto pessoal. Por que isso é tentador? Simples responder: Conceição é uma provocação ao cinema feito no Brasil há duas décadas e criticado, sobretudo, por muitos escribas (mais especificamente das revistas eletrônicas) envolvidos direta ou indiretamente com alguns dos diretores do filme – em particular com o Daniel Caetano – o que faz do evento não só algo geracional (da parte dos diretores), mas íntimo (da parte de quem se identifica com o filme). Vê-se em Conceição, naturalmente, uma espécie de representante de muitos anseios e posturas. Por isso, entender o filme como um canal que deu vazão a sentimentos de muita gente que busca pensar o cinema brasileiro é, de alguma maneira, se apropriar do filme como “nosso” – sentimento este absolutamente radical (porque compromete), além de um tanto quanto alienígena (já que não há muito interesse por parte da grande mídia e mesmo de uma fatia da classe cinematográfica em defender posturas estéticas ou modos alternativos de produção).

Por isso, sentimentos de elo tão forte – não só pessoal, mas estético, social e histórico – como o que levou Luis Alberto Rocha Melo a fazer (admiravelmente) de sua crítica na Contracampo não só uma questão íntima, mas também uma discussão sobre o filme como fato estético, repercutindo cenas e criando reverberações não só para além do filme (o que certamente seria mais fácil e mais camarada), mas no próprio corpo de Conceição; ou mesmo o distanciamento comprometido que estimulou o sempre discreto Filipe Furtado a falar de sua relação pessoal com a questão no site da revista Paisà (mas, ao mesmo tempo, apontando estratégias de construção formal).

Ao falar dessa impossibilidade de não repetir certos expedientes críticos, não se tenta aqui arrogar que essa crítica será diferente, mas sim compreender e diagnosticar sentimentos similares em torno de Conceição – Autor Bom é Autor Morto, que faz com que críticos, em maior ou menor grau, se expressem um pouco da mesma maneira, com sensibilidades parecidas, em relação ao filme. Eu (inevitável, agora, o uso da primeira pessoa) não me excluo. Creio, sim, que o longa dos cinco diretores pode dar mais do que lhe é pedido e, se em algum sentido esse filme opta por coisas fundamentais, é na sua opção em ser importante sem visar a importância, político sem fazer politicagem, em ser bonito sem ser vaidoso, em ser inteligente sem ser intricado, em ser engraçado sem ser careta, em ser experimental sem ser sisudo. Não, meus caros, apesar das virtudes (ser e, no entanto, não buscar) da última frase, o filme não é um poema de San Juan de La Cruz – é franciscano demais pra isso; mas por outro lado, é dionisíaco demais para ser franciscano. Está ai: é um filme dionisíaco – o tesão pelo cinema e pela vida (sem separá-los). A prova? Em qual filme contemporâneo se filma uma roda de baseado com tamanho rigor ritualístico?

Como diz João Luiz Vieira no fim de Conceição – Autor Bom é Autor Morto, o filme não tem estilo, como conclama o título (e o número de diretores), autoria não é lá uma questão tão fundamental para sua existência, antes, portanto, é interessante falar desse trabalho a partir de duas questões que determinam de modo imediato sua forma e seu lugar no panorama cinematográfico: a curtição (elogio da irresponsabilidade) e o posicionamento (a inevitável responsabilidade).

Onde não tem samba tem desilusão

Em meio ao breu, sentados a uma mesa de boteco, alguém pede que se acenda as velas. A cada tragada, a brasa do baseado se acende e se apaga gradualmente. A luz do baseado ilumina parcialmente os rostos dos presentes. Esta é uma sequência coletiva de um filme coletivo: um filme que é plural não só no número de diretores, mas na maneira de filmar, nas referências cinematográficas, nas opções de abordagem, nas construções plásticas e dramáticas. Ora é um documentário, ora é um falso documentário; ora é programa de TV, ora é filme de ação; ora é chanchada, ora é experimental. Está claro que o longa é um “vômito conceitual” – expressão de Herbert Vianna sobre o discão Selvagem, de 1987, mas que cabe perfeitamente para o filme em questão.

A curtição é uma afirmação e um posicionamento e está tanto na ressignificação que aqui se faz da primeira e da segunda parte do refrão da música de Zé Kéti, que na verdade é uma música triste que fala de morte. Mas não seria Conceição ao seu jeito um filme que também fala de morte – não da morte como experiência humana derradeira, mas a morte de certo mundo (ou como diria Rocha Melo, sobre o “fim de mundo”)?

Em tempos de leis de incentivo, filmes feitos com dinheiro público e visando uma procura, às vezes falaciosa, de público, não raro revelam-se muitos projetos de cinema que caem na neutralidade, na responsabilidade histórico-político-cultural que beira um discurso de propaganda oficial. Vez ou outra, diretores veteranos contemplados por essas leis dizem que “quem quiser fazer filme de autor, que faça com próprio dinheiro” – uma máxima de Sérgio Rezende, o autor de Mauá. Ok. Depois dessa aula de populismo exemplar de Rezende, comecemos pelo que o filme de Samantha Ribeiro, Guilherme Sarmiento, Daniel Caetano, Cynthia Sims e André Sampaio não é.

Conceição não é:
Filme de autor – tem cinco diretores;
Exercício de estilo – não tem estilo;
Filme de gênero – há vários gêneros, ao mesmo tempo em que revela a impossibilidade de ser “de gênero”;
Um filme de “historinha” – Uma vez que tem uma que é matriz, a partir da qual se inventa uma porção de outras histórias;
Uma entrevista com Dalton Trevisan;

Conceição é:
Exploitation;
Feito com dinheiro público (só que da UFF e do CTAv);
O que Jards Macalé falou de seu disco Contrastes há exatos 30 anos atrás, em O Globo (o mesmo jornal que deu bonequinho dormindo para Conceição): “livre, sem estilo: uma imensa confusão”;
Literalmente, “filme de mulher pelada”;
Um documentário com o papa João Paulo II;
Filme de maconheiro;
Filosofia de botequim;
Quase um slasher movie;

Conceição é irresponsável no sentido que não carrega em si a missão de responder pelo cinema brasileiro, de trilhar caminhos estéticos e temáticos que procurem justificar sua existência, ou pedir desculpas pelo fato de ter sido feito. Sua irresponsabilidade está em mandar às favas qualquer obrigatoriedade velada carregada nas costas pelos filmes brasileiros. Sua responsabilidade, no entanto é bem outra: com a autenticidade de seu projeto, com o cinema (o brasileiro, entre eles).

Quem esperar um filme que faz uma crítica pontual ao modus operandi do cinema brasileiro, dançou. Não há um vilão produtor (no máximo temos um professor universitário dentro de uma ambulância); não há uma denúncia social (mas uma garota que coloca veneno no prato de comida de uma mendiga com uma grande coxa de frango – que logo troca por uma asa minúscula), além de um garoto humilhado porque a profissão do seu pai é vender merda na rua. Paródia de Sérgio Bianchi? Não, porque ambas depois vão parar em um bar e o garoto é um dos personagens ficcionais que vão à desforra com seu criador.

Como tem gente que gosta de listar “filmes de mulheres”, temos em Conceição um filme que de uma vez só conta com duas diretoras: Cynthia Sims e Samantha Ribeiro. O filme tem um “discurso feminino” também? Claro, se entendermos que uma crítica ao falocentrismo é castrar um personagem, colocá-lo em posição ginecológica e propor que seu pau se transforme em quibe. Da escola de Ivan Cardoso. Antológico.

O matador Jards Macalé em sua epopéia arruma um momento na sua perseguição a um personagem sem nome para cantar e tocar a música de Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos. Este outro personagem que corre interminavelmente, sintoma maior de um filme siderado, vai cobrar dos diretores/criadores um rumo, um destino.

Esses universitários fizeram a lição de casa: no deslocamento da câmera pela cidade é um traço da disciplina Andrea Tonacci/Bang Bang; a estética do papo furado e a concretude física da ação e dos personagens teria boa nota junto à disciplina de Sganzerla em A Mulher de Todos (mas não só) e acenam amigavelmente para o professor Eliseu Visconti de Os Monstros do Babaloo.

Curtição total e, a exemplo de Alma Corsária, de Carlos Reichenbach, o filme nasce e morre (literalmente) em um boteco. Conceição sacraliza o botequim como uma espécie de oficina do cinema brasileiro – certamente sem os botequins não haveria cinema moderno brasileiro, a foto do encontro dos cinemanovistas em torno da mesa de botequim e o bar Soberano na rua do Triunfo...

Uma das coisas que salta aos olhos em Conceição é sua zona indiscernível entre cinema e vida: não sabemos onde começa uma coisa e onde termina outra. É um registro, não de alunos exercitando suas taras cinefílicas e requentando fórmulas do passado, mas de um grupo de realizadores que fizeram um documentário sobre um filme que demorou quase dez anos para ser concluído – não um documentário que aborda o problema e o relata, mas que tem seu processo, pulsando, a cada fotograma. A conversa da mesa de bar expõe o desejo do filme, que é fazer todos os filmes do mundo. Certamente é esse sentimento que faz de Conceição um filme único no panorama atual: desejo (note-se que Conceição tem um parente próximo: Olhos de Vampa, de Walter Rogério). Uma ascese trabalhosa de anos e a vontade de existir como tesão.

É um filme sobre a impossibilidade de cinema no Brasil? Mais ou menos. É um filme sobre o fantasma da impossibilidade, sobre fazer das tripas, coração. O filme acaba em samba, claro, o que é diferente de acabar em pizza. Não é derrotista, não é desiludido e assim, o samba pede passagem porque “onde não tem samba, tem desilusão”.

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