nas locadoras
A Morte (La Commare Seca),
de Bernardo Bertolucci (Itália, 1962)
por Cléber Eduardo

Prosa com poesia, poesia em prosa

Quando rodou o primeiro plano de seu primeiro longa-metragem, Bernardo Bertolucci tinha 21 anos de idade e um livro de poemas publicado. Em set de filmagem, também tivera experiência única, ainda que marcante, como assistente de direção de Acattone – Desajuste Social (1961), de Píer Paolo Pasolini, cineasta então estreante, que se tornou teórico de um “cinema de poesia”. Pois, na entrevista veiculada no DVD de A Morte (La Commare Seca , 1962), Bertolucci lembra da ambição de escrever poesia com sua câmera. Objetivo esse que, segundo sua “fala”, era fruto da inexperiência da ocasião, mas, que no começo dos anos 60 (algo ignorado por ele na edição), foi um dos desafios das experimentações modernas – atualizando uma busca do poético, empreendida, sobretudo nos anos 20, por expressões vinculadas às vanguardas européias. 

É evidente nessa primeira obra as marcas de uma poesia visual escrita com a câmera (como os travellings demonstrativos de autoria e reveladores de uma fome de mise-en-scène), assim como está clara a inserção de momentos como “parênteses” do relato, como áreas de escape da narrativa, que a interrompem para se deter no fluxo elíptico das experiências. Mas esses espaços do poético, em geral salientados pelo exibicionismo de uma caligrafia visual, estão a serviço de uma prosa. Há, como núcleo narrativo, a voz de um investigador interrogando suspeitos do assassinato de uma prostituta. Temos a reivindicação da memória do dia e da noite vividos pelos suspeitos nas horas anteriores ao momento do crime. Temos relatos, enfim, um após o outro. E as imagens desses relatos, da tarde-noite dos suspeitos, sucessivamente até o final. Bertolucci trabalha com a poesia dentro dos planos e com a prosa na estruturação das seqüências. Se opera na simultaneidade das ações em um mesmo espaço (a cidade de Roma durante a tarde, o parque Paolino durante a noite), o tempo avança em elipses dentro de uma ordem cronológica em cada bloco, cada um deles composto do mesmo período de horas na vida dos suspeitos. Há linearidade na sucessão dos depoimentos e dentro dos próprios depoimentos.

O que os conecta, além do parque à noite, para onde todos convergem, é uma tempestade. Ao ouvirmos o som de um trovão, em mais de uma oportunidade, vemos um corte para uma janela. Do lado de fora, chuva. De dentro, uma mulher que, depois de aparecer em um primeiro momento acordando, reaparece depois se preparando para a noite. É a prostituta que, após a primeira seqüência, com o corpo estendido ao lado do rio, surge de novo no quarto e, em alguns momentos, entra no campo de visão dos suspeitos no parque. Como os suspeitos também, eventualmente, cruzam uns com os outros, ou pelo menos vêem uns aos outros em suas passagens pelo parque à noite, cria-se uma espécie de “coral”, com uma estrutura que, nos últimos anos, tornou-se moda: uma narrativa abarcando outras, com cada uma delas, em seu transcorrer, fazendo esquinas e intersecções com as demais, com protagonistas de uma história sendo figurantes em outras.

No entanto, em 1962, já havia Rashomon, de Akira Kurosawa, com seu desdobramentos de versões e pontos de vistas sobre um mesmo personagem, de modo a se questionar a verdade em primeiro plano, mas a imagem como verdade em um segundo momento. Se há verdade é móvel, mutante, fluida, movediça, o que resta à imagem, se não reproduzir esse pântano de sentidos? Não podemos esquecer, ainda nesse sentido, dos dois filmes de Alain Resnais (Hiroshima Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad), lançados poucos anos antes de La Commare Seca, com um enfoque da memória como labirinto e reinvenção: a memória produz imagens, mas com qual veracidade? Imagens de experiências ou do desejo de experiências?

Bertolucci garante na entrevista já mencionada que não havia assistido Rashomon antes de fazer La Cammare Seca. Não importa. O importante, em uma possível conexão entre os dois filmes, é que, em relação à imagem, Bertolucci preserva seu sentido de documento de verdade. Há um crime, um interrogatório (só com a voz do interrogador), suspeitos e uma punição ao final. Mais importante: chega-se à solução por conta de um “olhar”, de um observador, um homem sem câmera, porém com os olhos abertos, testemunha da violência de seu mundo. Ele viu o crime. Viu uma imagem. E tê-la visto é suficiente para a polícia usar sua visão como prova inconteste.  Assim como a descrição da lembrança é prova em si mesma da inocência ou não dos suspeitos. É preciso lembrar em detalhes, ter muitas imagens para contar. La Commare Seca é um exercício de precisão ou de ficção da memória, ou ao menos de crença da polícia e do diretor nessa precisão possivelmente ficionalizada. Nesse sentido, há, sem esse propósito, uma resposta a Resnais. Há um resgate da ameaçada natureza da verdade e da imagem como tal, mesmo sendo uma imagem não reproduzida tecnicamente, mas uma imagem impressa no cérebro.

A presença de Pasolini

La Commare Seca era um projeto de Pasolini com o produtor Antonio Cervi. Bertolucci seria apenas um dos roteiristas. Foi orientado pelo produtor, que queria um sucesso similar ao de Acattone, a fazer algo “pasoliniano” – apesar de Pasolini, naquele momento ter realizado apenas um filme. Excessos do culto ao autor. De acordo com Cervi, Bertolucci fracassou. E graças ao fracasso de ser cover de Pasolini foi convidado a dirigir ele mesmo o filme. Segundo afirma Bertolucci nos extras, seu roteiro pouco tinha a ver com Pasolini, exceção feita à ambientação e aos acontecimentos. Enquanto Pasolini fizera Acattone com closes fixos e frontais, buscando uma poesia das pinturas toscanas, buscando algo de sagrado naqueles rostos do povo, Bertolucci diz ter trabalhado constantemente com os travellings, com a câmera circulando pelos espaços. O estilo do filme nasce, portanto, da negação de seu “mestre”.

Mas é inegável a presença de Pasolini. A aparente simplicidade dos acontecimentos vividos pelos personagens na única tarde e na única noite nas quais são acompanhados pela câmera não esconde uma certa busca de algo especial e extraordinário nesses acontecimentos – como se a ida ao parque à noite carregasse para cada um ali um certo ritual de descoberta ou de confirmação de uma vida dura e desfavorável, uma certa pureza obtida pela experiência no andar térreo ou no subsolo da Ítala do pós-guerra, a Itália dos anos 50, que não havia se transformado em um país dos sonhos.

Cada experiência vivida na Roma do início dos anos 60 é uma imagem daquela cidade naquele momento. É a mesma Roma de A Doce Vida, de Federico Fellini, mas uma outra Roma dentro daquela Roma, uma Roma de periferia, de gente miúda, de rapazes tolos de tão arcaicos, de outros malandros e violentos, de seres sexuamente ambíguos, todos manifestando violência ou desconforto. Não se busca aqui o povo como no neo-realismo, explorando a imagem índice de real, mas um povo cuja imagem está em uma proposta estetizante, construtivista, que explicita suas operações. Esse é o lado poesia de Bertolucci, um poeta da escrita que, em sua primeira experiência como diretor, não abre mão de trabalhar na prosa.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta