A Comédia do Poder (L'ivresse
du pouvoir), de Claude Chabrol (França/Alemanha, 2006) por
Eduardo Valente
Poder privado, interesse público No
primeiro plano de A Comédia do Poder, a câmera focaliza a paisagem de Paris
do alto, pela janela de um escritório. Ouvimos uma conversa que começa fora de
quadro, a câmera recua num movimento na mão, e revela Michel Humeau, que fala
ao telefone. A câmera o acompanha enquanto ele começa a caminhar pelos corredores
de uma empresa (que, logo descobriremos, é uma corporação estatal presidida por
ele) até entrar no elevador, no qual além de continuar ao telefone interage com
uma série de empregados (em cujas conversas começamos a compreender coisas sobre
a personalidade dele). Ainda num mesmo plano, sem cortes, vemos ele sair do elevador
no térreo, onde ele se distancia da câmera ao sair pela porta principal – e ser
imediatamente interpelado por dois policiais, e preso – o que a câmera mostra
a distância, fixa que está no interior da portaria. Mais
do que apenas servir como introdução narrativa ao filme (o que não deixa de ser,
com brilhantismo) o plano-sequência acima descrito nos apresenta o tema principal
de A Comédia do Poder: as constantes tensões entre as dimensões do público
e do privado, especialmente no que se refere a figuras de autoridade e poder que
lidem com diferentes encarnações do Estado, da noção mesma de serviço público
(onde esta própria expressão indica já uma tensão). Não por acaso, então, a câmera
começa mostrando a cidade (o público), só que logo revelando sua posição ao fazê-lo:
de dentro dos mecanismos, dos corredores do poder, de onde não sairá nem mesmo
quando o personagem que ela acompanha sai do prédio (mostrando assim que é uma
câmera que não obedece aos preceitos de uma narrativa clássica, e sim se posiciona
frente ao mundo a partir de um determinado ponto de vista). Humeau sai para a
rua (a dimensão pública), onde será preso – mas isso a câmera mostra de longe,
como de longe mostrava a cidade. Nesta
seqüência, vemos como a idéia mesma de “interesse público” se distorce e se perde
num emaranhado de corredores que equivale ao meandro de interesses os mais particulares
possíveis: não por acaso (de novo) todo o processo de corrupção é revelado a partir
de uma amante, de uma questão de foro particular (e aí, se alguém quiser lembrar
dos vários escândalos políticos brasileiros, sempre expostos por irmãos, ex-mulheres
e amantes, sinta-se livre para tal). A cidade, o espaço público continua distante,
como distante ficará no filme todo – quase uma abstração, pois A Comédia do
Poder (caso raro de uma feliz tradução “não ao pé da letra” de um título de
filme) é uma que se interpreta em particular, nos ambientes fechados das casas,
das salas de interrogatório, dos restaurantes esfumaçados: bem longe do público
que a financia e é afetado por ela – e, mais do que apenas longe dos olhos e do
alcance deste público (a não ser pela intermediação midiática – também ela personagem
desta “comédia”), longe acima de tudo dos interesses públicos que em tese a pautariam.
Se de fato esta introdução em plano-seqüência serve tanto
para dar início à trama propriamente dita do filme como expor sua posição frente
ao assunto, não é apenas isso que o plano inicial faz: ele também introduz o espectador
no universo bastante particular do cinema recente de Claude Chabrol (sobre as
várias fases do prolífico veterano, vale ler este
texto). Trata-se de um cinema que, como pudemos ver pela freqüência da expressão
“não por acaso” na descrição acima, chama a atenção por duas características complementares:
uma atenção extremamente analítica com o que enquadra e como enquadra; e uma marcante
frieza, igualmente analítica, frente ao jogo da encenação de seus personagens
e atores (e “jogo”, aqui, pode e deve ser lido no sentido francês da expressão,
onde jeu também se refere ao ato mesmo de atuar – que serve sempre para
atores E personagens). Para quem duvida, basta assistir aos extras do DVD nacional
de A Teia de Chocolate: como eu já anotei aqui no nosso Bloco de Notas,
estes servem como uma assustadora (pela clareza e profundidade) aula sobre o poder
expressivo da linguagem cinematográfica – assim como um desnudamento do processo
mental e criativo de Chabrol. Em Chabrol, nunca um leve movimento
panorâmico da câmera é apenas um ajuste espacial de quadro com o movimento dos
atores; nunca um enquadramento que mostre um personagem em primeiro plano com
um outro ao fundo fora de foco é apenas uma questão plástica: significados são
construídos cerebralmente por cada detalhe de sua carpintaria audiovisual. E,
aliás, vale dizer que mesmo que o trabalho de câmera seja especialmente marcante,
o som do filme é igualmente importante e significativo: basta notar o papel que
ele joga ao “invadir” os espaços privados como ecos distantes de uma esfera pública
que continua “existindo”, mesmo que para os personagens pareça importar só o particular
(ruídos de obras, ambulâncias que passam, buzinas – todas colocadas cuidadosamente
em cena). A
frieza analítica de Chabrol nos impõe então, como espectadores, um desafio de
fruição: acostumados que estamos ao jogo tradicional de identificação e comoção
com personagens e tramas do cinema narrativo clássico, vemos aqui nosso tapete
puxado. Assim é que, por exemplo, a juíza interpretada por Isabelle Huppert (uma
atriz extremamente cerebral, o que a torna, não por acaso – ah, chega dessa expressão,
vocês já entenderam! – uma musa chabroliana por excelência) poderia ser
simplesmente (e certamente seria, na maioria dos filmes sobre o tema) uma heroína
positiva, numa cruzada pela honestidade e pelo interesse público. No entanto,
Chabrol a torna apenas mais uma peça deste quebra-cabeça, onde importa muito menos
que se defenda este ou aquele lado, e sim que percebamos a imbricação constante
entre esfera pública e privada: acompanhamos a vida pessoal da juíza, onde seu
comportamento com o marido e o sobrinho deste apenas servem para nos encher de
dúvidas sobre suas motivações.
Se estamos certos de que suas ações frente
aos acusados são aquelas com as quais concordamos, por outro lado não conseguimos
nunca compreender de todo suas motivações: afinal, ela é uma vaidosa feliz com
o reconhecimento público/midiático, uma sádica aplicadora do seu poder
sobre os acusados (há um forte componente de recalque na sua forma de lidar com
os acusados), uma fria e calculista carreirista ou uma pessoa honesta e dedicada?
Ela é um pouco disso tudo, nos dizem Chabrol e Huppert – ou talvez seja mais do
que isso tudo e nem sempre isso tudo. Ao espectador cabe julgá-la na sua complexidade,
e se concluir por este ou aquele veredicto o fará por seus próprios olhos, por
sua conta e risco, e não por algo que o filme nos afirme. Ao nos colocar nesta
posição, Chabrol sabe bem como ela é desconfortável pela incerteza dolorosa –
e nada poderia ser mais adequado em um filme que trata de como olhar para figuras
da esfera pública. Não por acaso (desculpem! desculpem!),
o filme termina abruptamente com uma decisão da juíza que é igualmente dúbia (e
que ela toma num enquadramento que deixa seu rosto completamente escuro – um enigma
para nós): ao decidir largar o caso para cuidar do marido que tenta o suicídio,
ela se humaniza frente a nossos olhos como mulher (algo que o filme, até então,
desconstruía), mas fraqueja como representante do interesse público, deixando
que o caso certamente se perca nas mãos da instituição maior da justiça – que,
como vemos na figura do presidente do tribunal, é fraca. De novo, o particular
se sobrepõe ao público – só que desta vez estamos ao lado dessa decisão, e “humanamente”
podemos concordar com ela. Mas, se podemos concordar que o privado se sobreponha
ao público aqui, será que estamos tão distantes assim dos corruptos que fazem
o mesmo? Chabrol nos deixa essa pergunta-bomba no colo,
e joga os créditos sobre a imagem de maneira abrupta, como que para ampliar ainda
mais o nosso incômodo. Assim, a única certeza de que conseguimos sair de A
Comédia do Poder é de que os mandos e desmandos desta comédia não estão assim
tão distantes de nós. Ou melhor, há uma outra certeza: a de que a linguagem do
cinema, nas mãos de alguém como Chabrol, pode muito ao servir como espelho do
homem e do mundo – um espelho distorcido e manipulado, claro, nunca um espelho
naturalista que simplesmente mostra o que “está ali”. editoria@revistacinetica.com.br
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