in loco - cobertura dos festivais
Colegas, de Marcelo Galvão
(Brasil, 2012)
por Raul Arthuso
De
corpo e alma
Colegas se coloca desde o início como uma
fábula. No prólogo, um narrador apresenta o universo
da história com personagens que pulam do teto de um prédio.
Um universo de exagero romântico. Que o fato dessas personagens
serem portadoras da Síndrome de Down possa suscitar algum
tipo de debate, isso fica escanteado logo no início, pois
não estamos no mundo cínico de um Haneke ou na vida
dura dos Dardennes, mas num universo do exagero, da pantomima,
do artificialismo dos cartoons, dos livros infantis.
As personagens são parentes de Pernalonga, Tom e Jerry,
Homem-Mola, Multi-homem, Supergêmeos. Também não
se trata de qualquer fábula, mas uma aventura: dois rapazes
e uma moça vão roubar o carro do inspetor do instituto
em que vivem e sair pela estrada para realizarem seus sonhos,
fantasiados com roupas achadas em um circo de beira de estrada,
logo no início da viagem.
Não se trata de uma aventura qualquer: é uma aventura
mediada pela cinefilia. Márcio, Aninha e... Stallone (!)
saem por aí inspirados por seu filme favorito, Thelma
e Louise. Por onde passam, os três tentam reproduzir
situações de filmes, repetem diálogos famosos
e isso acaba por ser fagocitado para o modo de ser do filme: Colegas
revela-se um filme de primeira cinefilia passada a limpo.
Marcelo Galvão realiza uma série de esquetes de
citação de filmes famosos ou formadores do imaginário
popular. Resulta daí o que há de mais divertido
e verdadeiro em Colegas: sua pulsão de fazer um
filme pelo amor a outros filmes e o impulso primeiro de estabelecer
uma simbiose – inocente, sem dúvida – entre
sonho e filme. É a pulsão mais primária em
seu público: o prazer – quase sempre derrisório
– de viver o cinema.
Esse
prazer torna-se mais significativo – e também límpido
– quando se leva em conta que os três protagonistas
trabalhavam na videoteca do instituto onde moravam, e da presença
marcante da tela de televisão durante todo o filme. Não
é apenas uma simples oposição entre cinema
e TV ou uma escala de intensidade de envolvimento a partir das
imagens vistas nos dois tipos de tela, mas sim o valor simbólico
de uma cinefilia que se dá via home vídeo - ou seja,
do contato fácil, abrangente, intenso e, possivelmente,
mal ajambrado do acesso pela tela pequena do aparelho televisor,
muitas vezes mutilando a imagem. A organização e
articulação entre os filmes se dá na superficialidade
da separação por estantes.
Em Colegas, “ir ao cinema” não existe.
É um gesto aos filmes e não ao cinema. Há
uma paixão evidente, porém acompanhada de uma profunda
desorientação. A articulação aqui
reflete com clareza essa relação. Além dos
esquetes de citação cinematográfica, todos
os elementos ao redor são feitos da banalidade da primeira
leitura das obras: os sonhos manjados dos protagonistas –
ver o mar, casar e voar (!) – os policiais trapalhões
que caçam os protagonistas, os clichês da bichinha,
do filhinho de papai, da gorda, dos argentinos dançando
tango. Esses clichês são articulados sem qualquer
rigor de filmagem, de estrutura narrativa ou montagem. Não
que Colegas pareça um filme que se fez sozinho,
mas exatamente o seu oposto: com a paixão embaixo do braço,
alguém filmou sem a menor idéia de encadeamento
de toda essa salada de citações e signos, sem a
destreza com a agulha que torna Tarantino um hábil costureiro
das referências dentro cinema contemporâneo. Se em
cineastas como Edgar Wright e Guy Ritchie é possível
pinçar as costuras dos signos que compõem o filme,
em Colegas elas estão expostas, pois abertas ou
feitas de nós cegos.
O
efeito imediato é um humor algumas vezes delirante, pois
inebriado no espírito despropositado da aventura das personagens;
outras vezes, desconcertante, na medida em que resta ainda um
pouco de surpresa na realização; e outras tantas,
apenas constrangedor, já que se confundem um pouco intencionalidade
e causalidade, o inocente toque do artifício feito com
despropósito na mesma intensidade em que falta tato para
fazê-lo. Se isso resulta em um filme tão sem pé
nem cabeça a ponto de ficar clara sua falta de rigor –
e o momento em que dois dos protagonistas são levados por
acidente num baú de caminhão até Buenos Aires
e o terceiro misteriosamente aparece para se juntar a eles é
apenas o mais evidente –, seu espírito let it
be pode fazer a vez numa citação surreal de
Psicose a ponto de levar ao delírio, pois filmada
elegantemente, num ritmo lento até então inédito,
com clima raramente tão bem construído até
ali, e uma resolução descabaçada, cujo resultado
é um sincero WTF????
Colegas apresenta, então, um desafio crítico:
se por um lado Marcelo Galvão faz uma aventura em que tudo
pode acontecer, recheada de um prazer em ter o cinema como companheiro
– e isso é sedutor e divertido em alguma medida –
toda a articulação e modulação, a
construção de ritmos e atmosferas, enfim, a construção
fílmica que por vezes se faz de simples artesanato num
filme competente, mas que ultrapassa esse limite num grande filme,
é tão aleatória e desconjuntada que torna
quase impossível aderir de corpo e alma a um filme sem
corpo e com tanta alma.
Outubro de 2012
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