ensaio - especial cinema americano hoje
A potência da incompreensão
por Rafael Ciccarini
colaboração especial para a Cinética

"Pensei que, quando eu ficasse velho, Deus entraria na minha vida. Ele não entrou", diz um resignado Tommy Lee Jones, em certo momento de Onde os Fracos não Têm Vez. Em verdade, como se pode subentender pelo título original (algo como "não é país para os homens velhos"), há aqui um filme sobre a maturidade. Ou melhor, sobre a impossibilidade e imprecisão da idéia de maturidade num mundo, em última análise, incompreensível. A experiência humana marcada pela incerteza, a tendência quase inexorável ao erro e a impotência plena frente a uma lógica que coloca o homem em posição diminuta diante de sua natureza ao mesmo tempo implacável e incompreensível são características presentes em toda a obra dos irmãos Coen.

Se retornarmos ao seu primeiro filme, Gosto de Sangue (1984), que, como este Onde os Fracos não Têm Vez, também se passa no Texas (além de também ser uma peculiar releitura de gênero), temos ali um prólogo onde um narrador dá as coordenadas do que será o universo que teremos pela frente, enquanto vemos planos fixos da árida paisagem texana. Naquela peculiar releitura do noir, o narrador acaba se tornando vítima de uma lógica por ele mesmo anunciada e que acaba servindo para toda a filmografia dos Coen: “algo sempre pode dar errado”, diz M. Emmet Walsh. Porém, em Gosto de Sangue (acima), ainda que haja desencanto e um certo cinismo em relação ao percurso humano, há o contraponto do vigor da mise-en-scène, da forte vibração resultante da articulação auto-consciente de gêneros e matrizes (noir, Hitchcock, horror) e da adesão apaixonada e sincera a esse imaginário. O cinema pulsa, a articulação é a energia vital.

Não por acaso, no filme atual, que, dessa forma, fecha uma espécie de trilogia do desencanto (tendo, no meio do caminho, Fargo, de 1996), temos também, ao início, um prólogo, anunciado também por um narrador em off (aqui, Tommy Lee Jones), enquanto novamente vemos imagens fixas da paisagem onde se dará a história que está prestes a ser contada: um Texas desértico, misterioso, em si um paradoxo pelo carga histórico-mitológica nele intrínseca, numa história de homens se perdendo e se matando em meio a essa dialética atroz de virtude e contingência, onde o objetivo inicial – o dinheiro – parece perder a importância frente a esse algo que não se conhece, mas que acaba sendo o motor das ações e das vontades. 

Também em Fargo há a trajetória do erro, da incerteza e da contingência disparando uma cadeia de mortes e desencontros, mas ali ainda há a visão bastante carinhosa em relação ao lugar, às pessoas, aos costumes – como se houvesse, apesar da trágica cadeia de acontecimentos, uma certa esperança de mudança que surgiria do essencial, do simples. A incompreensão de Francis McDormand em Fargo frente ao estado de coisas que presencia não é de resignação, desencanto e ceticismo. Ela, como Tommy Lee em Onde os Fracos não Têm Vez, não compreende o que se passa a sua frente e redor, mas disso não resulta desistência, pelo contrário: ela está grávida e, antes de tudo, seguirá em frente.

Já em Onde os Fracos não Têm Vez, os Coen retomam o western, um gênero em que se construiu toda a mitologia da América na idéia de um país fundado por homens essencialmente virtuosos, fortes, valorosos, que se impuseram frente à fortuna e opressão – cinema americano por excelência, na célebre assertiva baziniana. Pois é justamente através desse gênero que se verá o esfacelamento dessa mitologia, a impotência da virtude, a fragmentação desses valores. Tommy Lee Jones é o "homem velho" que decide se aposentar (símbolo oposto da gravidez de Marge Gunderson, em Fargo). Ele se reconhece muito mais nas histórias do passado que num presente que lhe escapa constantemente e relembra um tempo onde xerifes andavam sem armas (ainda que em territórios marcadamente violentos), pois, de alguma forma, havia uma lógica que podia ser compreendida e portanto um espaço a ser ocupado por valores legitimados até por aqueles conhecidos como os "foras-da-lei".

No tempo do filme, num país sem lugar para esses homens velhos, o fora-da-lei é Javier Bardem, mas aqui não há espaço para legitimação qualquer: seu personagem, Anton Chigurh, é o símbolo desse estado de coisas, é alguém que vive sob uma lógica própria, completamente destituído de valores compartilháveis, um assassino cujas motivações são, no limite, incompreensíveis. Ele nem é completamente sádico e nem pragmático, mas uma construção dramático-conceitual complexíssima, pois também metaforiza o papel central da contingência no universo dos Coen (o jogo de cara ou coroa), satiriza a retórica e a lógica cartesiana pela maneira como encaminha as conversas – que muitas vezes define os destinos daqueles que com ele têm o infortúnio de cruzar – e ainda traz consigo todo um imaginário do facínora construído pelos westerns, com suas peculiaridades e excentricidades (basta lembrar da arma predileta que Chigurh sempre carrega consigo).

E como, então, lidar com esse homem? É o que pergunta o policial a Ed Tom Bell (Lee Jones). Eis a pergunta que permanece sem resposta. Em Onde os Fracos não Têm Vez, não há tanto o alívio do humor negro, da câmera estilizada, do prazer muitas vezes puramente estético e cinéfilo proporcionado pelo jogo metalingüístico em Gosto de Sangue (foto), nem a – ainda que pequena – esperança metaforizada em candura e nascimento de Fargo. Aqui o tom é seco, a decupagem precisa, o ritmo angustiantemente conciso. Joel e Ethan Coen fazem talvez seu filme mais maduro justamente sobre um homem que, tendo chegado àquilo que conhecemos como maturidade, não é capaz de ter nisso qualquer tipo de consolo ou resposta, que não se reconhece em seu lugar, em seu país, em seu mundo. Como Chigurh, o xerife Jones aceita a aleatoriedade e a contingência das coisas: não por acaso um e outro permanecem vivos. O western clássico, sabemos, termina com o confronto entre o mocinho e o bandido, mas aqui esse confronto não tem mais sentido: ninguém ali quer duelar. Ele se aposentará e, terminará o filme não muito diferente de como começou: se referindo a tempos que não voltam, numa bela, mas amarga poesia do desencanto.

Março de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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