ensaio - especial cinema americano hoje
Câmeras em todos os lugares
por Eduardo Valente

Que curioso caminho o cinema digital trilhou nestes últimos dez anos, desde que “explodiu” para o mundo de fato, com a dupla-Dogma de Festa de Família e Os Idiotas, no Festival de Cannes de 1998: da promessa de uma liberdade criativa e diminuição dos custos, da democratização do acesso ao radicalismo de um Five, de Kiarostami – e, no entanto, o velho “sistema” mostra sua força, toma o digital para si e o transforma em ferramenta intrinsecamente ligada à produção do bom e velho espetáculo dos blockbusters. É o que nos mostram estes dois filmes americanos que arrasaram bilheterias pelo mundo no começo de 2008: Cloverfield (foto acima), de Matt Reeves (embora o filme seja mais comumente conectado ao nome de J.J. Abrams, produtor do filme e o homem por trás do fenômeno televisivo de Lost); e Ponto de Vista, de Pete Travis (curiosamente um nome também oriundo da TV, mas a britânica). Em ambos, a multiplicação e onipresença contemporânea das câmeras e das imagens digitais são parte essencial de suas narrativas – ainda que de maneiras um tanto distintas.

O espetáculo do “real”

Em Cloverfield, pode-se dizer que não haveria filme sem a câmera digital, que ela é a própria razão de ser do projeto. De fato, J. J. Abrams mostra aqui que não é nada bobo e realiza o que pode ser considerado um filme-projeto – poderia até ser chamado de um filme-manifesto se ele fosse um diretor “alternativo” ou dinamarquês, mas no caso americano ficamos com a expressão acima. Nesse sentido, Cloverfield parece interessado, acima de tudo, em servir como um portfólio para a incorporação de uma determinada gramática audiovisual contemporânea e onipresente (a dos self vídeos) à dinâmica do espetáculo hollywoodiano. Se os vídeos em primeira pessoa já se espalharam totalmente, partindo da esfera caseira, passando pelos documentários e pela invasão da internet, finalmente influenciando fortemente o telejornalismo, Cloverfield parece querer servir como pista de provas de suas possibilidades (e limitações) na seara dos blockbusters.

Neste sentido, é inegável que o filme tem boa parte de sua atração ligada à idéia de “novidade”: o uso radical de uma “estética do vídeo pessoal” nos remete em algum sentido aos primeiros filmes sonoros (com suas canções hiperpresentes, ou falas sem parar) ou aos primeiros filmes coloridos (com seu exagero cromático). São compreensíveis extravagâncias de quem descobre uma ferramenta nova e quer testar seus limites – e causar maravilhamento no espectador pela novidade. Num certo sentido, o momento do cinema em suas experiências digitais parece propício para várias aproximações deste tipo (pensemos em 300, pensemos em Beowulf), mas o que é curioso no que diz respeito a Cloverfield, em relação a filmes como os acima citados, é que sua estética busca excitar pelo lo-fi, causar impressão pela sujeira, pela “falta de tecnologia” num certo sentido – e aí talvez o sentido de espetáculo vá na via contrária dos exemplos citados do som, da cor ou dos grandes espetáculos digitais-computadorizados.

No entanto, existe um outro “espetáculo” em jogo em Cloverfield, que talvez seja seu maior índice de contemporaneidade – mais do que as imagens da câmera digital de que é composto, de cabo a rabo. Trata-se do espetáculo da “realidade”, segundo um novo estatuto que vem sendo buscado em várias manifestações recentes do audiovisual. Pois se o espectador está disposto a passar por cima da sujeira e do literal incômodo causado pelas imagens de Cloverfield (o balançar frenético das imagens de vídeo causa náuseas em várias pessoas – há vários relatos na web de espectadores deixando as salas de cinema rumo ao banheiro), é porque ele propõe uma experiência “real”. Não por acaso, o personagem que porta consigo a câmera avisa logo no começo: “I’m documenting” (“estou documentando”).

Documentar, para ele, torna-se uma obsessão uma vez que o cotidiano banal de uma festa dá lugar à irrupção do fantástico, do extraordinário, aquilo que tanto é desejado pelos infinitos “câmeras” que se espalham pelo mundo. Logo, o personagem confirma suas intenções: “people are gonna watch this” (“as pessoas vão assistir isso!”). Mais do que registrar um momento para sempre, a motivação passa a ser fazer história, tornar-se parte da narrativa da Humanidade ao servir como testemunha de um evento histórico. Não por acaso, aliás, a estrutura visual de Cloverfield faz inúmeras referências às imagens do 11 de setembro (a poeira pela rua, o desmoronamento dos prédios, as pessoas “migrando” sem rumo pelas ruas de Nova York, a fumaça, etc) – imagens que, curiosamente, embora sejam o modelo e gênese de todo um desejo atual do “espetáculo do real”, eram pouco abundantes então, uma vez que aconteceram no já incrivelmente distante 2001, onde as câmeras eram bem menos onipresentes do que hoje, sete anos depois.

Desejos de narrativa

Embora use de expedientes completamente distintos, Ponto de Vista parte de alguns pressupostos semelhantes aos de Cloverfield, sendo o mais importante esta filiação ao universo do pós-11 de setembro. Só que aqui, ao invés da referência através do imaginário audiovisual como no outro filme, temos a referência temática: a ameaça onipresente do terrorismo e a paranóia do “inimigo invisível”, que pode estar em qualquer lugar e ser qualquer pessoa – mesmo aquela simpática moça ao seu lado. A este ponto de partida, Ponto de Vista adiciona um desejo de incorporar à “grande narrativa cinematográfica onisciente” a possibilidade da pequena narrativa audiovisual do “homem comum” (curiosamente interpretado pelo ganhador do Oscar de melhor ator do ano de sua produção, Forest Whitaker), além da narrativa assumidamente manipulada do “espetáculo do real” pela grande rede de jornalismo.

Só que logo fica claro que em Ponto de Vista tudo isso entra em cena como simples âncoras de contemporaneidade, lugares onde se tenta achar alguma “novidade” para agitar o que não passa de mais uma velha narrativa de redenção sobre-humana do herói de ação (ainda que já na sua encarnação contemporânea, incorporada por um Dennis Quaid sem medo de mostrar as rugas e traumas do passado). Assim, somos expostos a um incrivelmente entediante entrecho criado para expor o gimmick supostamente novidadeiro dos “diferentes pontos de vista”, que no entanto se referem muito mais a “ilusões de ótica” do que “construções de olhar”. 58 anos depois de Rashomon, e 67 depois de Cidadão Kane, os olhares distintos neste Ponto de Vista só servem para melhor mostrar “a” verdade. No fundo, trata-se de pouco mais que um golpe de roteiro para esconder a simplicidade de uma trama que, uma vez reestabelecida na sua linearidade perdida, encontra seu melhor momento na perseguição de carros pelas ruas de Salamanca – momento em que finalmente o espectador, pela maestria técnica e de montagem envolvidas, consegue sentir alguma coisa frente ao filme, uma injeção mínima de adrenalina.

De fato, tanto Cloverfield quanto Ponto de Vista encontram um mesmo muro gigantesco na sua frente, face ao fraco trabalho de atores (monocromaticamente inexpressivos num deles; iconicamente vazios no outro) e de estrutura de personagens/drama nos dois filmes. Mas, de fato, trata-se de um problema em parte criado pelos próprios filmes, afinal, tanto Cloverfield em seu radicalismo estético quase xiita, quanto Ponto de Vista na sua “novidade de butique”, por mais contemporâneos que se queiram afirmar, revelam-se incapazes de se livrar do imperativo narrativo da “jornada do herói” e da busca do mecanismo de identificação do espectador com os personagens na tela – o que demonstra que, no fundo, o cinema de ficção do espetáculo continua sendo absolutamente o mesmo, por mais que o mundo à sua volta mude.

Março de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta