in loco - cobertura dos festivais
Cisne, de Teresa Villaverde (Portugal, 2011)
por Fábio Andrade

Cinema como alteridade

Talvez a cena mais importante de Cisne seja aquela em que Sam (Israel Pimenta) pede para ficar um tempo na casa de Vera (Beatriz Batarda). Ele quer ficar lá sem ela, “só eu e as suas coisas”. Na hora de ir embora e deixar seu amante a sós com sua intimidade, Vera hesita. “Não consigo sair daqui”, ela diz. Cisne vive desse binômio, da vontade de ser o outro atravessada pela impossibilidade de ser o outro, sentimento sintetizado pouco depois: é possível colar uma foto da pessoa amada no espelho, sobre o reflexo de nosso próprio rosto... mas a foto escorrega e nosso rosto reaparece por cima da imagem. É impossível não ser eu.

Em alguma medida, todas as personagens de Cisne vivem esse mesmo dilema e passam o filme tentando superar o insuperável. Pablo (Miguel Nunes) vai frequentemente observar a porta da casa onde mora a mãe que ele não conhece. Chega a contar quantos passos seriam necessários para sair do carro e ir até lá, bater à porta. Um dia, toma coragem e vai. Quando saca do bolso uma foto de infância, sua mãe fecha novamente a porta pro passado. Cisne é feito dessa tensão entre se aproximar e se afastar, entre desejar estar sob a pele do outro – ser os ossos do outro – e, ao mesmo tempo, a consciência de que isso seria um ato de violência sem frutos. Vera diz ter escrito 5000 cartas a Sam, mas logo em seguida faz a ressalva: o lugar onde as cartas são escritas não pode ser o mesmo lugar em que elas são lidas. Cisne acontece no limbo entre esses dois lugares.

Essa vontade de se tornar o outro não é exatamente um desejo novo. Grande parte do melhor cinema das últimas duas décadas é movido por esse sentimento, que já rendeu obras-primas como Trouble Every Day, de Claire Denis, Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul e O Nascimento do Amor, de Philippe Garrel. Cisne não é mais um título a entrar para esta lista, em parte por não ser exatamente uma obra-prima - é um filme cínico demais para isso - mas também por esse desejo ser apenas um primeiro impulso para o drama. Seu maior interesse vem de um outro lugar, contido naquela mesma cena. “Só eu e as suas coisas”, diz Sam. Pois é esse acompanhante, esse desejo dos restos do outro, que determinará em grande medida a estrutura dramatúrgica de Cisne. Não se trata de uma junção de acontecimentos desconexos; antes, de conexões entre “desacontecimentos”. Cisne é feito do lixo, das sobras, das ligações que perderam as partes e já não conectam mais coisa alguma. Permanece, apenas, o desejo de conexão.

O desejo e a impossibilidade de ser o outro passam a ser atravessados por uma outra dúvida, que tem origem justamente nesses “desacontecimentos”: como posso desejar ser outro se sequer sei quem eu sou? “Eu não posso ser nada disso”, diz Vera. “Não o sou. Também olho para mim mesmo e me pergunto quem é”. Uma vez extinto o sujeito, sobraram apenas as possibilidades de analogia. Quando Vera diz não temer a morte, mas sim temer perder as pernas em um acidente, é inevitável fazermos a conexão com a primeira cena do filme, em que uma ave é alvejada e em seguida resgatada do chão por um garoto que afirma “está viva”. Mas não é o mesmo garoto que soltara a ave justamente para que ela fosse alvejada?

Cisne é somente isso, mas o somente não é pouco. Foram-se as ações, sobraram as causas e revéses, uma meia dúzia de corpos a rondar feito zumbis e um desejo de entrar em contato com o outro. Desse desejo, surge uma razão para viver. Mesmo que seja falsa, tão falsa quanto o universo projetado no palco em que canta Vera... pouco importa. “Posso até adivinhar a cara que ela faz quando me escreve”, são as palavras de “Nina”, canção de Chico Buarque cantada por Vera em seu show. Em um cinema que já não vislumbra possibilidade real de drama – que se furta de fazer a única coisa que o cinema pode fazer: mostrar – Teresa Villaverde encontra refúgio nessa possibilidade de projeção, de se acreditar que é possível imaginar o que acontece quando não estamos lá, numa dramaturgia  que transforma o entre em ato, e tem nas causas e consequências a única ação possível. Cisne carrega, estampado no corpo, o peso das deficiências que lhe são a própria origem. E, embora suas feridas apontem para o vazio, há certo fascínio em observar um filme se desinflar com tamanho ímpeto e voluntarismo. Surge daí uma admiração que só pode ser distante. Diante de Cisne, não há outro mais impenetrável do que o próprio espectador.   

Outubro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta