in loco - cine pe 2009
Fragmentos de uma semana em Recife
por Cléber Eduardo

Take 1: Arredores e Corredores

Um festival de cinema é tanto seus filmes quanto seus arredores e corredores. Tão importante quanto as imagens e sons são as conversas motivadas por elas nas mesas do hotel e dos bares no entorno da sala de exibição. Tão importante quanto os debates com presenças de jornalistas e realizadores na platéia são os encontros casuais em outros cantos da cidade. Um festival é feito de formalidades, embora umas tantas delas sejam desnecessárias pela quebra do espírito de cinema, pela regulação dos imprevistos e acidentes positivos, que, como se sabe, exigem alguma informalidade para poderem ser viabilizados. Nesse sentido, a festa do Macaco Pururu, no abandonado Cine Atlântico, em Olinda, foi o momento mais informal, digamos assim, de todo o festival, até por se dar à margem dele. Um apresentador de quimono anuncia vídeos premiados com assumido espírito de gozação. Um dos candidatos a um prêmio irônico, que celebra a figura responsável pela manutenção do fechamento de um cinema de Recife, sobe ao palco para reclamar de sua candidatura. Não era performance, aparentemente. Era reação em protesto mesmo. Festa de cinema no cinema.

Take 2: Cinema Sport Club

O amor pelo Sport, no ambiente do Cine PE, é maior que pelo cinema.

Take 3: Eu e Shampoo, Shampoo e eu.

Entre os principais momentos da passagem por Recife, uma especial passa pelo cinema, mas só de passagem mesmo, porque a ficção, no caso, é a própria experiência não ficcional.  Eu e o colaborador Julio Bezerra, que lá estava pela Revista de Cinema, vivemos essa fábula sem roteiro: hospedados em Boa Viagem, na vizinhança de um endereço cult para os iniciados no futebol, fomos ao templo de Shampoo. Para quem não associa o nome ao cinema, Mauro Shampoo, o homem do endereço cult, foi personagem de um curta de Paulo Fontonelle. Antes e além disso, foi e continua sendo dono de uma barbearia e também é o mais famoso fracassado do futebol: Shampoo fez apenas um gol nos 10 anos em que vestiu a camisa 10 do Ibis, orgulhoso da condição de pior time do mundo, título expresso sob o distintivo na camiseta do clube e oficializado no Guiness Book. O Ibis nem tem campo. Treina em uma praça. Nem tem perua ou ônibus. Cada um vai com seu transporte, público ou particular, e não foram poucos os atrasos, ainda mais em dia de chuva. Shampoo fala disso como um performer, que, sem ser solicitado, já começa a atuar no climax.  Parece emocionar-se ao colocar para rever uma entrevista sua quando jogou com os veteranos do Flamengo pela seleção master de Pernambucano. Solicitei os serviços com a tesoura do atacante de um gol só. Enquanto deixava o cabelo mais “show” (palavra-chave de Shampoo), eu refletia se era possível atravessar essa camada de circo, de máscara e de auto-carnavalização, e sobre qual seria o caminho dessa possibilidade, câmeras escondidas fora de questão. É uma provocação a documentaristas de personagens exóticos e loucos por uma câmera. Como fazer outro jogo? Como lidar com a fresta? A máscara é muito padronizada e repetitiva.

Take 4:  Premiações de curta

Premiações primam tanto pelas presenças como pelas ausências. A de curtas do Cine PE primou pelas ausências. Se podemos discutir se o melhor filme é Superbarroco, como foi, ou Muro, como poderia ter sido, não podemos discutir se N. 27 deve ou não ganhar prêmios, de preferência em categorias de maior peso. Ele deve(ria). Essa foi a grande ausência. Talvez tenham valorizado um pouco demais Sapatos de Aristeu, que compunha com os outros três curtas pernambucanos a força principal da competição em 35mm, mas que, ao ganhar o prêmio de direção, tirou o foco de vez de N. 27. Não era fácil arranjar um lugar para ele entre Superbarroco e Muro, mas, mesmo se for  ossível todos os componentes terem ignorado o curta em questão, resta lamentar em tom alto esse esquecimento programado. Valorizou-se os projetos com algum nível de abstração e pesquisa, ou de sutileza controlada, mas não se viu o vigor do rigor de economia narrativa de N. 27.

Take 5: Premiações de longa: alô alô júri!

A premiação de longa foi no mínima estranha, com o documentário Um Homem de Moral, de Ricardo Dias, ganhando prêmio de roteiro, enquanto os críticos premiaram Praça Saens Peña, que, apesar de méritos reconhecidos, não foi enxergado pela maioria deles (e a maioria estava vendo-o pela primeira vez). Premiaram, literalmente, no escuro.  Ou confirmam a desconfiança de alguns cinéfilos críticos, para os quais os críticos ignoram a imagem e só lidam com os acontecimentos dos filmes e com seus bastidores. O júri reviu o filme em DVD e também deu prêmios a Saens Pena, entre os quais os de interpretação para Maria Padilha e Chico Diaz, assim como de direção para Vinicius Reis. Nada a opor. Já o prêmio de melhor filme para Alô Alô Teresinha, de Nelson Hoineff, é sinal de um momento muito negativo no cinema brasileiro, para não dizer na humanidade, porque mostra uma sede de prazer sem nenhuma responsabilidade com relação aos métodos para se ofertar esse prazer.

Take 6: Futuro em breve

Se os momentos negativos são evidentes, também o são os positivos. Sem nenhuma idealização e futurologia, é possível prever dias melhores nas expressões e discussões estéticas nos próximos anos, ao menos se a atual geração que está se expressando nos curtas tiver continuidade, podendo chegar ao longa sem tantos obstáculos de toda ordem. Seja em seus filmes, seja em suas retóricas, há sinais de um futuro mais reflexivo, que pensa as próprias opções, que se abre para o debate e está interessado em diálogo com a crítica, que procura algum nível de dramaturgia, que tenta conciliar expressividade e apagamento das vigas, não necessariamente com completo controle e equilíbrio.

Take 7: Tosses e Risos

É impressionante como a cultura do riso no Cine PE leva o público a uma avalanche catártica, às vezes motivada por filmes nada empenhados em provocá-la, como N. 27, na maioria das outras vezes apenas ativada pelos estímulos na tela, como em Alô Alô Teresinha. O caso de N. 27, para a percepção nesse texto, é de despolitização (na falta de termo menos genérico) da percepção. Porque o riso nos momentos de maior tensão evidencia a posição dos ruídos da platéia. Os risos estão com os meninos do lado de fora do banheiro, não com o garoto em quadro, envergonhado por ter se “melado” – vergonha essa justificada, quando sai do banheiro, pela reação histérica e coletiva dos alunos. Não era vergonha, portanto, mas sim receio. Se o filme fica o tempo todo com o menino no banheiro, em todos os sentidos, a platéia estava com os ruídos da “massa sem rostos e sem individualidades” do lado de fora, no corredor. É sempre complexa a operação de descolamento de uma reação em grupo, resignificando a relação entre as imagens e depositando nelas uma tendência de recebê-las de certa maneira.

Outra manifestação é a tosse em filmes nos quais os espectadores se sentem desafiados em algum nível, seja no entendimento da proposta, seja pelos valores aparentemente em conflito com os seus, seja porque é atacado em algum ponto fraco. São considerações impressionistas, evidentemente, mas levadas em conta nesse raciocínio. A tosse parece ser sempre uma forma do corpo expressar uma negação manifestada por um “despejo” de ar sufocado. É sempre um mesmo tipo de tosse, seca. Muitas delas foram escutadas durante Os Sapatos de Aristeu, cujo protagonista é um travesti já morto, com quem o espectador se relaciona por meio de seus objetos e com a mediação das mulheres de sua família. Mas pelo menos talvez as tosses ainda preservem algo de pessoal, se comparadas a avalanche de risos.

Take 8 – Provocação ao cinema de Recife

A ficção ainda não produziu nada à altura da cidade, de suas complexidades, de sua geografia, de seu espírito. Amarelo Manga é olhar específico e direcionado para um lado apenas: o pior. Árido Movie deteve-se pouco. Amigos de Risco sai para a rua, mas se dirige para a energia negativa, potencializada pela conspiração dos acidentes. A jornada está acima do espaço. Algum filme a caminho?

Take 9: O trio PE

A linha de ataque dos curtas pernambucanos, composta de Muro, N27 e Super Barroco, são a artilharia pesada da temporada 2008/2009. Lirio Ferreira tem suspirado orgulho pelos três curtas.

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