in loco - cine pe 2009 Retrospectando:
dias 4 a 6 por Cléber Eduardo
Dia 4: Dois belos curtas e um longa no escuroUm
dos momentos mais lamentáveis do Cine PE foi a exibição de Praça Saens Peña,
de Vinicius Reis, que resultou em empurra-empurra de responsabilidades, de equipe
do longa para os responsáveis técnicos e dos responsáveis técnicos para a equipe,
quando os jornalistas pediram explicações sobre as razões do filme ter passado
no escuro, não apenas com rarefação das cores como também das expressões dos atores.
A atriz Maria Padilha chegou a afirmar, em um debate, que preferia não ter exibido.
Não se sabe se mudou de postura após o filme ter levado alguns prêmios, entre
os quais o dela como atriz e o de Chico Diaz como ator. Convenhamos que ele e
ela, se o rigor for reivindicado, não concorriam com ninguém. Estavam em competição
dois documentários e duas outras ficções (Estranhos e Mistéryos)
que não trazem interpretações dignas de prêmios – com todo o respeito pela presença
de Carlos Vereza no segundo, já que é só uma presença com uma voz a modelá-la
na narração. Por já ter sido exibido em outras oportunidades,
Praça Saens Peña torna-se mais claro em seus desequilíbrios com a distância,
embora também fique mais cristalino em seus pontos positivos, entre os quais o
olhar sem idealizações e sem julgamentos para as “imperfeições” de seus personagens
de uma mesma família de classe média da Tijuca, no começo da Zona Norte do Rio,
um segmento urbano carioca geográfico e social que raras vezes foi tratado recentemente
com alguma dignidade. Se a classe média é o espaço social da comédia de costumes
atual, que procura rir sem ofensas de seus modos mais típicos, em geral tendo
como núcleo central as questões do relacionamento homem-mulher, Praça Saens
Peña desloca esse enfoque do riso fácil para um registro de dramaticidade
menos banalizável, porém branda em sua administração, a expor os atritos entre
pai, mãe e filha na condução de um cotidiano em momento de possível virada de
vidas. Existe
uma procura pelas pessoas e não pelo típico, operação essa muito valorizada hoje,
tendo em vista que a noção de tipo, proveniente de Lukaks e adotada por Guido
Aristarco, tornou-se quase motivo de repúdio. Na procura dessa autenticidade de
personagens-pessoas e não personagens-tipos, Praça Saens Peña coloca alguns
obstáculos e alguns empurrões em seu caminho. Tem-se a impressão de que, quando
substitui a ficção naturalista pelo registro documental da entrevista com Aldir
Blanc, perde-se justamente em efeito realista-naturalista, pois o efeito da entrevista
é de uma experiência posada e deslocada do registro ficcional. Não importa a autenticidade
da estratégia. Apenas a autenticidade do efeito. Ainda baseado nesse princípio,
o início do caso da esposa com um rapaz mais jovem, sem tempo para muito vacilo,
parece um salto sem sobressaltos dentro do caminho da sensibilidade da personagem,
como se o filme empurrasse-a à frente, em uma dinâmica descompassada com sua experiência
e sentimento. Um pouco de pressa, talvez. Da mesma forma, para um filme empenhado
em colocar tijolo sobre tijolo com senso de tranqüilidade, sem grandes arroubos
e floreios, mas com atenção, o final soa como uma fuga de um confronto entre os
personagens tão amados pela instância narradora, como se o olhar cinematográfico
quisesse deixar de fora da imagem os efeitos de uma rachadura com possíveis conseqüências
traumáticas. Nenhuma conseqüência. Uma carta apazigua os ânimos. É
necessário aproveitar a oportunidade de se abordar Praça Saens Peña para
também encará-lo como parte de um momento maior. Há em alguns novos filmes brasileiros,
e também de outros países, uma procura por um olhar relativizante e comprometido
com seus personagens. Não importa quem sejam, não importa o que façam, importa
apenas a absolvição da parte do filme, já que, em alguns casos de neutralidade
de valores e de fuga do confronto com o personagem (e não entre os personagens),
esse apagamento de juízos é legitimação, absolvição, mas nunca compreensão sem
nenhum tipo de atitude. Toda a questão é localizar onde e como os filmes se colocam
dessa maneira, em geral evitando o desconforto das tensões, como se o amor pelos
personagens estivesse em sua proteção, uma forma de poupá-los da crueldade do
próprio filme. Podemos identificar isso em Cão Sem Dono, de Beto Brant,
e em No Meu Lugar, de Eduardo Valente, mas é algo em expansão. *** Pouco
há a escrever de relevante sobre os curtas Hagakure, de Marcos Rocha (para
além de demonstrar espanto com seu esforço em ser somente bem realizado na imitação
de um imaginário estético oriental), e Cattum, animação de Paulo Miranda,
ambos em competição na categoria digital. Nós Somos um Poema, de Sergio
Sbragia e Beth Formaggini, categoria 35mm, tem a seu favor depoimentos inspirados,
além de lançar luzes sobre uma parceria (entre Vinicius de Moraes e Pixinguinha),
mas é um documentário que, pela relação com seu assunto, tem mais cara de Multishow
que de festival de cinema, mesmo sendo um festival de cinema de ar empenhadamente
pop e popular, como é o caso do Cine-PE, onde o prazer do espectador está acima
de sua provocação. A provocação ficou por conta de Os
Sapatos de Aristeu, de Luiz René Guerra, alagoano formado na FAAP (SP), e
Superbarroco, da pernambucana Renata Pinheira, também destacada em suas
atividades como diretora de arte e artista plástica. Os dois curtas acabaram sendo
– junto com Muro, de Tião – os mais premiados do Cine PE, no final. Embora
sejam completamente distintos (para além de terem a ação concentrada em uma casa),
ambos flertam com os riscos que, paradoxalmente, garantem sua força distintiva.
No
caso de Os Sapatos de Aristeu, a direção, orientadora da montagem, valoriza
demais, segundo esta visão aqui colocada, os detalhes e os enquadramentos. Há
uma concentração excessiva em parecer controlado e em procurar nos objetos os
resíduos de uma vida. Não se trata de um filme de cenografia, mas no qual a direção
de arte é nuclear, porque caracteriza um universo e uma subjetividade. Se tem
a força de criar densidade onde a princípio reina a rarefação, Sapatos de Aristeu
às vezes quer se exibir demais em sua descrição, destacando que deveria ser sutil.
E sutilezas são mais potentes quando estão apagadas. Superbarroco vive
essa mesma crise interna, embora, nesse caso, os excessos de imagens e de sensibilidade
sejam conceituais: o próprio título justifica essa lógica de sobreposição de camadas.
O que impede o cuidado com as imagens de não se tornarem apenas cuidado com as
imagens é a importância dada à interpretação do paraibano Everaldo Pontes, que,
com sua colocação corporal e seus balbucios, injeta presença humana em uma superfície
sob permanente risco da onipresença dos artifícios. Dia
5 – Engajamento com os oprimidos do cotidiano
Em uma
ou outra sessão de curtas metragens do Cine PE percebe-se a mão e o olhar de uma
organização curatorial, embora isso não seja uma questão para o evento. Nunca
essa mão e esse olhar estiveram tão evidentes quanto no encadeamento dos vídeos
O Anão que Virou Gigante, animação de Marão, e Quem Será Katlyn?,
de Cauê Nunes, sequenciados por dois dos três curtas em 35mm da noite: N. 27,
de Marcelo Lordelo, e Eu e Crocodilos, de Marcela Arantes. O peixe fora
d’água da sessão foi a animação Juro que Vi: O Saci, de Humberto Avelar,
que destoou dos outros projetos. Tanto na animação de Marão como no documentário
de Cauê Nunes existe um esforço por desestigmatizar as características físicas
e culturais estigmatizadas pela sociedade. Em um caso, o motivo de estigma é a
altura de um personagem, ora muito abaixo da média, ora muito acima. No segundo
caso, são os travestis. Nos dois, o esforço político de construção de aceitação
se dá pelo humor, como foi o caso, na temporada passada, de Café com Leite.
Já N. 27 e Eu e Crocodilos individualizam esses estigmas, colocados
como algo generalizado nos dois vídeos, e procuram uma dramatização de opressões
cotidianas, tipicamente masculinas (em seu exercício), que são potencializadas
pela avalanche de reações em grupo. Há em ambos um ataque a pequenos fascismos
de estragos enormes. N.
27 pede um texto só para si, no futuro. Interessa por agora apenas
valorizar a situação e o local principal de seu drama: uma diarréia “mal sucedida”
e um banheiro de escola na hora do “recreio”. Predomina a crueldade, não necessariamente
do filme, mas no filme. Eu e Crocodilos (foto) não evita também a crueldade
e, se lida com um tom mais fabular (inclusive na luz), esse recurso é apenas uma
solução expressiva, em vez de naturalista, que subjetiva a personagem na imagem.
Trata-se de uma adolescente com complexos de ausência de maior volume em seus
seios e bunda, que coloca enchimentos e veste duas calças, sem deixar de agüentar
as piadas do irmão diante dos amigos. Só resta contra-atacar na mesma moeda. O
curta prima por ótimas presenças de jovens atrizes e por um naturalismo amalgamado
com estilização. Se os curtas engajaram-se em seus personagens
em situações de vulnerabilidade, procurando a solidariedade e a exposição da crueldade,
o longa da noite, Alô Alô Terezinha, de Nelson Hoineff, sob o pretexto
de mimetizar as estratégias de seu principal personagem fora de quadro (Chacrinha),
expõe de forma cruel a fragilidade de seus personagens secundários (ex-calouros
e ex-chacretes), reproduzindo as energias opressoras denunciadas nos curtas, com
ainda maior poder de estrago. Não existe imagem inocente e postura neutra, portanto
é preciso fazer algumas colocações duras, claras e diretas, sem diplomacias impotentes
para um real debate crítico. Alô Alô Terezinha, se visto somente pela catarse
anedótica ofertada em enormes doses, nos coloca em uma cabra cega. Sua falta de
pudor e responsabilidade só pode ser encarada como visão carinhosa para o “povo”
a partir de extremismos de um molde populista e demagogo de olhar para os seres
humanos e para a imagem deles. O público aplaudiu intensamente,
afinal, está ali principalmente para rir (inclusive do drama alheio, como aconteceu
com N. 27), porque o cinema tem espírito de balada no Cine PE. Alô Alô
Terezinha levou prêmio de público, obviamente, que aceitou a reivindicação
do documentário: rir em avalanche da gozação com os segredinhos e com a vida miúda
dos seres humanos ali transformados em imagem para o documentário de auditório.
O júri também premiou o circo eletrônico e, se agisse de acordo com o bom senso
crítico, escreveria uma justificativa crítica para sua legitimação. Por necessitar
de mais linhas e mais argumentos, deixemos para um
texto à parte as colocações sobre Alô Alô Terezinha. Ele merece.
Dia 6: Clima de fim de festa Entre
os curtas da última noite, pensemos alguns destaques. Em Abril Pro Rock – Fora
do Eixo, de Everson Teixeira, Ricardo Almôedo e Julio Neto, produção de Pernambuco,
há dois aspectos: um é a notável articulação de informações com associação entre
essas informações para dar conta de um fenômeno da vida cultural de Recife; outro
é a incapacidade de perceber qual deveria ser a última imagem. Não se coloca mais
vozes depois de um mantra em homenagem a Chico Science comandado pelo Sepultura.
Cadê o montador? Já Silêncio e Sombras, de Murilo Hauser, demonstra mais
uma vez, para quem ainda não percebeu, o talento e a sensibilidade sombria desse
rapaz de Curitiba, não apenas na ficção (como em Outono), mas também na
animação, como com este curta.
Na
categoria de 35mm, Phedra, de Claudia Priscila, parece distinguir, à primeira
vista, pela “atitude” (da personagem e da realizadora), não tanto pela formalização
do material. Hóspedes, da gaúcha Cristiane Oliveira, tem a grandeza, mais
que política (convivência carinhosa entre as diferenças), de ser discreto: um
olhar delicado sem ostentar essa sensibilidade no encontro casual entre uma moça
e um anão. Dez Elefantes (foto), de Eva Randolph, já bastante circulado,
traz em sua potência, como Os Sapatos de Aristeu e Superbarroco,
seus próprios riscos. O olhar para o detalhe, para a duração em um momento, para
o tátil e o epitelial, se de cara nos coloca em contato com a memória de O
Pântano, de Lucrecia Martel, é porque existe, ao menos aparentemente, um esforço
de filiação e pertencimento. Fazer um cinema da sensorialidade e da sensibilidade
visual, por sua extração da sensibilidade dos corpos em quadro, é no curta tão
importante quanto demonstrar esse fazer sensível. É preciso sempre localizar onde
está nessas imagens o ponto onde a vinculação com certas filiações deixam espaço
para a genética visual própria. Sobre
o longa baiano Estranhos, de Paulo Alcântara, há pouco a ser analisado.
Talvez seja menos importante nesse momento pensar a proposta cinematográfica apresentada
– que é de uma simplicidade quase simplória, centrada em personagens tortos, filmados
sem gravidade – e mais interessante levar em conta as reações amigáveis e de engajamento
por parte do público na sessão. Estranhos parece ter encontrado seu público
ideal no Cine PE onde, em busca da graça e da celebração da vida (ou da auto-celebração
por parte dos filmes), as centenas de espectadores querem só a brisa do cinema,
não importa de qual natureza. Se lidar com contundência crítica com Estranhos
parece ser um exercício um tanto inútil, por se tratar de um filme cujas fragilidades
soam inofensivas, resultado de uma ausência mais ampla que a simples e suposta
falta de aptidão e competência cinematográficas, talvez seja mais complexo lidar
com o lugar do filme fora de um contexto de apreciação artística. Toda a relação
de um filme com seu espectador passa pela expectativa e demanda do espectador.
A platéia de Recife, claramente, quer se divertir. Qualquer outra oferta além
disso, qualquer conflito mais desconfortante, qualquer embate com a sensorialidade,
em geral, tem como resposta a indiferença. Maio de
2009
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