in loco - cine pe 2009 Dia
3: Concorrência desleal por Cléber
Eduardo
Cine PE,
terceira noite: centenas de cadeiras vazias, mas, ainda assim, centenas de pessoas
sentadas. Noite de jogo do Sport contra a LDU pela Libertadores da América. Anunciam
um telão na parte externa do Cine Guararapes, lugar de coxinha de camarão com
catupiri, de carne seca com tapioca, de acarajé pernambucano. Camisas rubro-negras
do Leão. É a noite de Um Artilheiro do Coração, de Diego Trajano, Lucas
Fitipaldi e Mellyna Reis, curta digital do Recife. O artilheiro é Ademir de Menezes,
craque do Sport, do Vasco e do Fluminense que, se não estivesse na final entre
Brasil e Uruguai na Copa de 50, no Maracanã, seria um astro eterno. É a tese do
curta, e tem sentido. Nenhum outro jogador brasileiro fez tantos gols em uma única
Copa do Mundo: foram nove. O quase Pelé se transformou em Barbosa do ataque. Derrota
na glória, trauma de vencedor. Não
procuremos valores estéticos. O curta é quadrado, cheio de gente falando, com
gols em imagens de arquivo, com a voz de Ademir, Queixada para os Leões do Recife.
A importância de Um Artilheiro do Coração é para além dele. Resgate e preservação.
Informação e cultura. Poderia passar na TV, seu verdadeiro lugar, mas, quando
seu lugar de exibição é o Cine Guararapes, auditório com nome de batalha, o cinema
é seu local. Porque na TV, quando o curta acaba, não haveria a reação ritualística,
com mais da metade das pessoas entoando, nos letreiros, o arrepiante grito de
guerra do Sport: “Pelo Sport nada? Tudo. Então como é, como vai ser e como sempre
será? Cazá! Cazá! Cazá, cazá, cazá! A turma é mesmo boa! É mesmo da fuzarca! Sport,
Sport, Sport!” O coro futebolístico invadiu os primeiros
segundos de Quintas Intenções, do carioca Mauricio Rizzo, também na competição
de curtas digitais. Uma comédia de homem e mulher, em momento de reencontro após
muitos anos, ambos disponíveis, ele imaginando com as mãos no peito dela, ela
imaginando com fio dental nos dentes dele. Clichê de gênero, mas funcional no
humor. Tosco na imagem, porém dentro de seu espírito: o de uma brincadeira convicta
de sua adolescência. Não ofende e, se o espectador não for brigado com a vida,
rende risos. O primeiro dos curtas em 35mm da noite, Cocais:
Cidade Ameaçada, de Inês Cardoso, é fruto de uma imersão da diretora em uma
comunidade de internos psiquiátricos – com o perdão do possível termo sem precisão.
A diretora conviveu com as pessoas mostradas no filme por um ano. Mas, essa instalação
no espaço e entre os indivíduos não é transmitida pelas imagens – primeiro porque
ninguém tem individualidade, sequer nome, depois porque a fragmentação inviabiliza
a observação, o olhar atento, e alimenta uma recusa da atenção aos rostos, corpos
e rituais de entretenimento (provocados por Inês). É o mesmo problema de Tarabaratara,
de Julia Zákia, que, como Cocais, tem alguns bons filmes em potencial em
sua soma de imagens, mas não escolhe qual deles
quer fazer. A
Mulher Biônica (foto), do cearense Armando Praça, com fotografia delicada
e recolhida de Heloisa Passos, diretora de Osório, é um paradoxo, assim
como o curta seguinte da sessão, Teresa, das estreantes paulistas Renata
Terra e Paula Szutan. Ambos somam recolhimento e excesso – uma soma tensa, que
desperdiça a concentração da energia. Ambos lidam com mulheres que, no abandono
ou no sofrimento, encontram um escape – uma em um batom vermelho paixão, outra
em um sexo anônimo no cinema. A Mulher Biônica tem uma luz sóbria e momentos
de situação over. Teresa tem uma luz expressiva e momentos de situação
sóbria. Um e outro têm um relação menos ou mais distante com O Céu de Suely,
de Karim Aïnouz, filme paradigmático de nossos anos 2000. E têm ainda um cuidado
com o olhar, com a observação das sutilezas, que nos coloca uma questão sobre
o feminino no cinema, que teria de ser encontrado nos detalhes e em uma imagem-sentimento.
Imagem essa que explode em A Mulher Biônica, que se derrama demais em Teresa.
São filmes desiguais, mas fortes em sua, digamos, entrega às personagens. O
longa em competição nacional da noite foi Um Homem de Moral, de Ricardo
Dias, documentário-homenagem que estava sendo realizado faz 10 anos, de um tom
sóbrio, formal (não formalista), educado, gentil e às vezes antiquado, sobre Paulo
Vanzolini, o sambista-cientista de São Paulo, compositor intelectual, quase um
lingüista da música. Voltaremos a ele em outro texto. Por enquanto, nos interessa
um lado periférico do filme, sua paulistanidade. A aproximação de Dias é respeitosa,
de intimidade com distância, sem euforias e clímax, mas com uma doçura tímida,
uma melancolia sem vergonha de sua beleza, um amor que não é paixão, mas sentimento
menos intenso, mais amplo. Continuemos nesse raciocínio depois, mas Um Homem
de Moral parece um filme de Roberto Santos, olhar de uma São Paulo de O
Grande Momento, que nada tem a ver com a paulistanidade-clichê de quem vê
de fora. A platéia aplaudiu algumas vezes durante a sessão. E louvou com emoção
ao final. Fora do cinema, no telão colocado pela organização
do Cine PE, o Sport jogava com a LDU, em Quito. E só se ouvia, depois de Ronda
e Volta por Cima, o Cazá-Cazá-cazá-cazá! dos torcedores locais – gente da organização
incluída. Mas, o festival é de cinema e, se até a direção do evento coloca concorrentes
aos filmes (no caso, o jogo do Sport), como lotar a sala? Não é um gol contra?
Paulo Vanzolini e Ricardo Dias mereciam um pouco mais de respeito. Abril
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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