in loco - cine pe 2009 Dia
1: Um homenageado ofuscado por Cléber Eduardo
Na noite de abertura do Cine PE 2009, com seis curtas
brasileiros na função de abre-alas para o destaque internacional, quem deveria
brilhar era Eden a L’Ouest, filme mais recente do homenageado desta edição,
Constantin Costa-Gavras. Longevidade e simbolismo, digamos assim, era a razão
da homenagem, ao menos como conceito. Na prática, as razões eram políticas – não
as dos filmes, mas a da vida (a de fora da tela). No Ano da França no Brasil,
trazer um cineasta que, embora nascido grego, radicou-se no país dos “autores”,
com todo o romantismo dessa afirmação, é uma forma de embarcar na onda. Ainda
mais quando esse cineasta é presidente da Cinemateca Francesa, essa instituição
que, entre 1948 e por todos os anos 50, formou a “cinefilia nouvelle vague”. Mas
o que Costa-Gavras (foto) tem a acrescentar em 2009, no cinema de sua responsabilidade,
ao fato de ter passaporte francês e o mais alto cargo da Cinemathèque? Deixemos
a pergunta em aberto para o caso de alguém ter uma resposta à mão. Fiquemos nos
conceitos: longevidade e simbolismo. Costa-Gavras é da geração 60-70 do cinema,
não em sua vertente dinamite (Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub, Jean Rouch,
Grupo Dziga Vertov, Hans-Jürgen Syberberg), mas do segmento narrativo-espetacular.
Mais de 50 anos de carreira, de simbolismo político, cujo ponto de partida e maior
ponto alto, sem relativizações, é o “clássico” do cinema político Z, de
1969, tornado importante pela denúncia anti-opressão estatal. Outras opressões
e manipulações executadas por poderes institucionalizados ou personalizados foram
denunciadas em suas imagens (Estado de Sítio, Missing, Atraiçoados,
Amen e O Quarto Poder), quase sempre colocando as teses à frente
da estética. Cinema político? Ou de assuntos políticos? Seria preciso rever com
atenção seus filmes e definir claramente a noção de política, quando empregada
ao cinema, mais que a arte, antes de tirarmos as respostas do bolso. Noção de
cinema, mais que de arte, porque o cinema, de maneira mais extensa, lida diretamente
com a política, desde a captação do dinheiro até a sua utilização, que inclui
a produção, a exibição, a valoração e a preservação dos filmes. Os
depoimentos do “vídeo-homenagem” insistiam em nos fazer crer que a importância
política do homenageado é irrestrita. Está nos filmes e nos estímulos gerados
por eles, em sua relação com os cinemas periféricos. Palavras somente de cariocas
de uma geração de hoje avôs e avós (Cacá Diegues, o casal Barretão, Silvio Tendler,
o casal Brandão – de pesquisadores), sem a voz de críticos e diretores mais jovens
para atestar a permanência do cineasta, não apenas a localização histórica de
sua importância para essas nossas celebridades críticas. Alguém chega a afirmar
que, por alguma equação metafísica ou secreta, Costa-Gavras interferiu, com seus
filmes, na abertura democrática nos anos 70-80 em Brasil. Ah? Expliquem de novo,
por favor, porque perdi algo. Z ajudou a depor os militares de verde oliva?
Foi o combustível para a reação armada no começo dos 70? Menos mistificação. Um
cinema político, que preze pelo termo, não precisa de mumificações mitologizantes.
Um cinema político mobiliza sensações e consciências, lida com a percepção a longo
prazo, como uma pedra a alterar os rumos de uma edificação na soma com outras
pedras, em vez de operar por compensações e identificações. Mas vamos à sessão
da noite de abertura. Na sala de cinema, política pela
músicaSe os curtas não animaram o espírito crítico e mal
fizeram cócegas na sensorialidade (ver abaixo), o longa de Costa-Gavras conseguiu,
sem esforço, melhorar a imagem dos abre-alas. Qualquer filme exibido antes ficaria
bem na fita depois da sessão-homenagem. Pontos de interrogação instalaram-se nos
rostos de alguns críticos ao final da sessão, aparentemente sem saberem se a filmografia
do cineasta grego, naturalizado na França, continuará seguindo ladeira abaixo
sem freios à vista, como induzia a crer o atrapalhado O Corte. Interrogações
sobre a pertinência da homenagem por meio de trabalho tão... Falta uma expressão
de justa síntese para definir tanto raquitismo estético e tanta patetice dramática.
Na terra dos mangues e dos caranguejos, Costa-Gavras andou de costas para seu
percurso. Como o cinema não honrou a razão desse festival
em Pernambuco, famoso pela quantidade de lugares ocupados no Centro de Convenções
em Olinda e pela disposição da platéia descontraída de rir de qualquer coisa,
coube à música executada por uma memorável orquestra local o êxito de seduzir
sensibilidades menos risíveis. Na música pura, essa arte sem letras, construída
apenas de formas sonoras e não discursivas, estava a política. Não pelas músicas
propriamente ditas, mas pelo contexto de sua vitalidade:
comandada pelo maestro Cussy de Almeida, a orquestra, que em momentos lembra uma
banda eslava, é integrada por uns tantos meninos e meninas, na casa do 1,40m e
dos 7 a 12 anos, considerados pejorativamente em condições de risco em suas origens
(ou em outras palavras, mais diretas, salvos da delinqüência pela arte, como insistem
em nos propagandear, sempre de forma pejorativa, de modo a dar relevância social
à música). Maestro e meninos já foram ao Faustão, estão progressivamente midiatizados,
mas isso não tira em nada seus méritos. A política musical
não está nessa operação de salva-vidas, mas na construção de uma sensibilidade
em coro, aglutinadora, que colocou instrumentistas e público em um mesmo mantra
sensorial. Nada a ver com os efeitos das comunicações de massa, mas sim com a
abertura para algo a ser descoberto e digerido, não para se concordar de antemão
porque atende nossas consciências. Costa-Gavras teria muito a aprender com os
meninos e com o maestro da Orquestra Cidadã. Porque os grandes filmes políticos
provocam momentos de interiorizações a partir de externalizações, autocríticas
e olhares para nós mesmos, se não como individualidades singulares, certamente
como indivíduos conectados a uma comunidade onde temos nossos papéis. Casos como
os de Terra em Transe, de Glauber Rocha, ou de A Chinesa, de Jean-Luc
Godard, talvez sejam exemplos redondos (em suas curvas). Não são apenas contra
o poder, mas em tensão com nós mesmos. O ápice chantagista da execução musical
foi quando um dos garotos desfilou pelos corredores do auditório, violino às mãos
e em ação, tirando “My Way” da condição, não por culpa de Frank Sinatra, de clássico
clichê, estado esse no qual foi jogado por obra dos diluidores e dos oportunistas
de plantão. Na terra dos pífanos, o caso foi de epifania. Coletiva, diria, sem
riscos. Conseguimos vislumbrar algumas zonas de escapes quando uma onda como essa
circula por algumas centenas de corpos sentados durante a apresentação e de pé
ao final. Pode parecer uma tolice afirmar isso em um texto destinado ao cinema,
porém não motivado pelo cinema, mas será um desafio qualquer imagem de qualquer
filme igualar-se ao efeito estético sinestésico desses meninos e desse maestro.
Palmas. Mais palmas. De pé, por favor. Está bem, exagero
sensível, reconheçamos. Na seleção de curtas, afinal, há duas preciosidades locais,
mas também internacionais – de Recife para Cannes. Uma é Muro, de Tião,
nomes de obra e de diretor tão pequenos para curta tão grande de um diretor tão
jovem e tão extenso em seu potencial, sobre o qual palavras podem inibi-los em
sua grandeza (como poderia dizer Jean Douchet em seu balizar artigo “A Arte de
Amar”). Outra é Superbarroco, de Renata Pinheiro – nomes um pouco maiores,
de filme e de diretora, mas não menor, em valor, que O Muro e a orquestra.
Algumas imagens desses dois filmes, não eles todos, estão à altura das notas musicais
ouvidas em transe. O Muro e SuperBarroco, cada um à sua maneira,
são transes audiovisuais. Já
Éden a L´Ouest, sem a obrigação de ser um transe, é transnacional. Sabemos
estar na Europa A, a oeste da Polônia, mas não muito mais. Sabemos que o protagonista,
jovem recém chegado ilegalmente de barco, vindo de algum país da Ásia ou da Europa
B (a leste da Alemanha), mas quase nada mais. A universalização da imigração,
pensada no filme em seus efeitos para os auto-exilados sociais no Primeiro Mundo,
não lida com as fontes do processo. Ninguém parte e se submete a qualquer coisa
sem motivos. No filme, motivos não importam. São vagos e gerais. Importa apenas
como a Europa reage à Eurásia B, às vezes com solidariedade por vampirismo sexual
(“seus europeus tarados”, nos exclamam as imagens), às vezes por identificação
social (um garçom, os ciganos), às vezes com as conhecidas políticas de repressão.
Em uma experiência transnacional, na qual o imigrante valer por todos os imigrantes
e os europeus são quase uma coisa só (negativa), a universalidade só pode ser
física, sexual, não social como nos mostra o filme em seu assassinato das especificidades,
mas essa universalidade física, a da linguagem dos corpos com a qual se comunica,
é autocensurada como experiência pelo filme. Do início do beijo temos o corte
para o pós alguma coisa. Mas que coisa? O imigrante não ama, não deseja, só sente
vergonha pela nudez alheia? Elias escapa da polícia marinha,
vai dar (e receber) em um hotel chique (na Grécia?), foge da polícia terrestre,
conquista sem fazer força outra mulher, é ajudado e prejudicado por outras pessoas
pelo caminho, sempre rumo a Paris, a capital da magia, digamos assim, ou onde
ao menos ele procura uma solução mágica. Nesse percurso, viabilizado por caronas,
ele corre e corre. E corre, corre, corre. Tudo acontece com ele, ele atrai todos,
de pessoas de olhar guloso a acidentes menores, sempre em registro cômico, entre
o patético e o constrangedor. Comédia maratonística, não apenas nos limites do
quadro, mas também na relação entre os planos, regidos pela imagem-movimento energizada,
como em Corra Lola, Corra, de Tom Twyker, sem sequer resquícios de imagem-tempo
ou observação para os olhares, para as situações, para as esperas. Costa-Gavras
chega aos 76 anos com um filme aeróbico, taquicárdico, de língua de fora, pautada
pela rentabilidade das ações. Não já assim em Z? Era, mas melhor. O que
era potente em 1969, além de coerente com o material, tornou-se fórmula. Em 2009,
a fórmula está previsível, redundante, impotente. Cinco
curtas que não rendem um TrocoNuma noite de seis curtas-metragens,
o Cine Guararapes, localizado no Centro Convenções de Pernambuco, em Olinda, estava
ainda com muitos lugares vazios. Para um primeiro contato com um evento famoso
pela grandiosidade das sessões (2,6 mil cadeiras), mas também pela sede de felicidade
de sua platéia, que parece em busca de motivos para rir, as duas famas foram somente
parcialmente justificadas na noite de abertura. Se a sessão dos curtas tinha uma
enorme quantidade de vagas vazias, os risos puderam ser ouvidos em alto som, com
intensidades razoáveis, mas sem muita duração, exceção feita a um único filme,
O Troco, de André Rolim, desde já candidato a melhor do público na categoria
digital. Sua
identificação foi direta – na verdade uma identificação pelo desejo de vingança
executada pelo filme contra as atendentes de companhias telefônicas. No caso do
filme, a fictícia Enganatel, cujo logo é o mesmo da Telefónica, aquela empresa
especialista em passar a perna em seus usuários, como sabem 11 entre 10 consumidores
de seus serviços. Todo o merecido ódio contra a companhia transforma-se em uma
comédia protagonizada por um casal de classe média, carregado na caricatura visual,
que testa a paciência de uma atendente da Enganatel e vive um deleite com esse
contra-ataque na mesma moeda. Podemos pensar até onde o riso é potência política
mobilizadora e até onde é somente um descarrego aliviante. Rir de uma vingança
que não mobiliza ações, em alguma medida, pode nos dar a sensação de ação terceirizada.
Se mobiliza ou não, nesse caso, pouco importa, porque isso é efeito, não construção.
E a construção, apesar de tosca em alguma medida, é certeira em outra. Não apenas
porque os diálogos são precisos em sua corrosividade paródica, mas também porque
sua simplicidade visual, calcada em planos fechados, tem momentos fortes na profundidade
de campo, quando a melhor piada está lá no fundo do quadro. Os
outros dois curtas digitais não têm a mesma felicidade no trato de seus materiais.
A animação A Ilha, de Alê Camargo, de Brasília, começa forte, concentrado
em uma idéia bem sintetizada (um rapaz ilhado entre duas vias expressas), mas
vai perdendo oxigênio, sobretudo quando flerta com O Náufrago, de Robert
Zemeckis. Manual
Para se Defender de Alienígenas, Zumbis e Ninjas, de André Moraes, de São
Paulo, também lida com o repertório pop, mas em sua vertente B. Também começa
com gás e perde o fôlego, em parte porque, como muitos curtas, entusiasma-se com
sua história, sem se dar conta de que sua história não sustenta a duração (20
minutos). Entre
os 35mm, pouco avanço. Menino-Aranha, de Mariana Lacerda, co-produção PE/SP
filmada em Recife (foto ao lado), usa vozes sobre o menino-aranha, um delinqüente
mirim escalador de prédios, e emprega nessas vozes imagens do alto da cidade,
defendendo uma tese, por meio das vozes, sobre a psicologia social do personagem
– mas, acima de tudo, sobre uma arquitetura do medo, sem, no entanto, mostrar
essa relação do verbo com as imagens. Onde está essa arquitetura do medo no filme?
Não está na arquitetura do filme, com sua recusa à cidade humana, com sua reprodução
de uma visão do alto, protegida, como se a altura viabilizasse melhor suas teses?
Já o pretensamente fofinho e romântico Ana Beatriz, de Clarissa Cardoso,
além de investir na doçura dos afetos com uma atmosfera de venda de algo nunca
situado (a bermuda, o acaso, o acidente, o amor possível), experimenta uma técnica
visual narrativa aparentemente apenas por experimentar (fotografias em continuidade
ou fotogramas com saltos, porém em continuidade elíptica). São muitas as lembranças,
mas a mais forte, como matriz diluída, é a de Jorge Furtado, com ou sem intenção. Fechando
a sessão, Blackout, de Daniel Rezende (SP) tropeça no problema de muitos
curtas – a vontade de prosseguir – e trava as canelas na reta do sprint
final – na hora do tal blecaute. O curta começa rigoroso, em sua opção ameaçadora
de rigor, com plano único e distante, deixando os atores quase sem luz e sem rosto
(Wagner Moura é uma voz, uma ótima voz), permitindo o desenquadre, a força dos
diálogos (sobre bastidores mal cheirosos da política) e dessa inusitada economia
visual, assim como de cortes. Porém, é atrapalhado quando se encaminha para um
desfecho (um corpo antes ignorado em um almoxarifado, o blecaute, o fim propriamente
dito). Abril de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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