in loco
Balanço de um festival - Cine PE 2007
por Luiz Otávio Pereira - colaboração para a Cinética

Mesmo sendo realizado em uma região cuja produção audiovisual cresce em atividade e importância (a instalação de um CTAv da Funarte no Recife acaba de ser anunciada), o Cine PE às vezes dá a impressão que o cinema não é a preocupação central. Para ser mais exato, o cinema enquanto expressão– que aqui tem bem menos espaço que o glamour e a indústria de entretenimento que surge ao seu redor. Esse foi um dos motivos que fez minha assiduidade ao festival diminuir ao longo das dez edições anteriores. Não foi coincidência que a alardeada presença de Rodrigo Santoro tenha acontecido no dia de maior público: a máxima “o cinema é a maior diversão” serve como característica para o evento. Ainda assim é um festival que neste ano reconheceu o valor da contribuição do fotógrafo que tinha “a câmera na mão” do Cinema Novo, Dib Lutfi – além de homenagear a atriz Patrícia Pilar.

Primeiros dias: documentários

Quanto aos filmes, a mostra de longas não poderia ter começado de forma mais equivocada. A seleção do festival se esforça tanto para mostrar a cultura pernambucana na tela que às vezes força a barra. Tanto Atabaques Nzinga, de Octávio Bezerra, quanto O Senhor do Castelo, de Marcus Vilar, mostram “a riqueza cultural de Pernambuco”. O primeiro apresenta a história de uma jovem negra em busca de suas raízes africanas. O filme desenvolve uma frágil narrativa em que a personagem percorre Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro como desculpa para fazer um catálogo de expressões da cultura afro-brasileira. Embora fique evidente o fascínio dos realizadores com a musicalidade e as danças representadas, o filme não consegue passar mais do que uma caricatura. É sempre algo triste quando um filme sobre identidade não consegue evitar o auto-exotismo.

Já o documentário O Senhor do Castelo traz mais do mesmo ao abordar a vida, a obra e as idéias do escritor Ariano Suassuna – atual secretário de Cultura de Pernambuco. A identidade cultural é um tema importante na fala do escritor, que tem uma posição bastante firme na defesa do que considera a cultura brasileira pura e contra as influências maléficas. Em uma cena tirada de uma de suas palestras, Suassuna se refere ao rock como “uma porcaria da pior qualidade” e sua argumentação permanece baseada no gosto, sem que o filme problematize tais afirmações. A oportunidade surge quando o escritor se refere à mistura de rock com maracatu promovida por Chico Science, mas nada é aprofundado.

Também impregnado de cultura pernambucana, mas com uma proposta mais cuidadosa, O Côco, A Roda, O Pnêu e o Farol é um documentário que mostra uma localidade na periferia de Olinda através do coco de roda, ritmo típico do litoral pernambucano. O filme explora o tema com um olhar afetivo e curioso, com depoimentos de pessoas simples cujas histórias e experiências de vida são o registro mais forte dessa tradição. As imagens da comunidade e de suas tradições religiosas e profanas nunca passam do limite de serem consideradas invasivas o ao mesmo tempo em que nunca estão distante a ponto de serem caricatas. É esse cuidado que cativa o filme da diretora estreante Mariana Fortes.

O erro da programação foi ter exibido O Côco, A Roda... depois de outro documentário que aponta para uma direção totalmente oposta: O Mundo em Duas Voltas mostra, em imagens tecnicamente grandiosas e depoimentos calculadamente claros e didáticos, a aventura da família Schurmann em sua segunda volta ao mundo em um veleiro. O choque entre essas duas visões do mundo é tamanho que certamente o espectador ficou atordoado. Com isso, saiu perdendo o documentário pernambucano que trata de um tema de pouca familiaridade com o grande público e cuja linguagem, longe de ser didática, pode parecer hermética. Já O Mundo em Duas Voltas, narrado pelo casal Valfrido e Heloísa Schurmann,  mostra o deslumbramento diante de culturas tão exóticas – filmadas para parecerem deslumbrantemente exóticas. Em termos técnicos, a produção impressiona pelo trabalho de câmera e pelo som. Logo na primeira cena isso fica claro, e aproxima este de outros filmes do gênero “aventura marítima”. Mesmo com a direção de David Schurmann, filho mais velho do casal, o tom aqui está longe da naturalidade de um relato íntimo, mais próximo de um documentário da National Geographic.

Os filmes de ficção

As quatro ficções presentes na mostra de longas têm em comum o fato de desenvolverem tramas urbanas. Eu sempre tive uma impressão incômoda de que o Cine PE era partidário da idéia de que, se o cinema nacional precisava imprimir no filmes uma identidade brasileira, o olhar deveria se voltar para o sertão, para as paisagens interioranas arcaicas e distante da influência externa. Posição bem desenvolvida em Central do Brasil, filme-chave que teve uma estréia nacional cheia de estardalhaço promovida em uma edição do festival. É até estranho perceber como as paisagens rurais quase inexistiram nos longas do Cine PE em 2007 (estranheza amplificada pela ausência de Baixio das Bestas, filme passado no interior de Pernambuco que poderia garantir a diversidade dos olhares sobre a cultura brasileira contemporânea).

Vindo de Minas Gerais, 5 Frações de uma Quase História foi o primeiro desta lista a ser exibido – e, inclusive, esse longa composto por cinco episódios de cinco diretores diferentes, tem como único foco de unidade as narrativas urbanas que desenvolve. Mesmo tendo sido escrito pelo mesmo roteirista, as partes não dialogam entre si e parecem uma continuação da mostra de curtas que abre a programação de cada dia. Essa aposta no formato do de filme de episódios parece uma saída para garantir visibilidade às realizações – afinal, um longa é produto comercial mais viável do que cinco curtas. No quesito técnico o filme é correto, em várias partes deixando clara a influência da publicidade no exercício da produção cinematográfica. Em uma das “frações” temos Jece Valadão encarnando à toda a sua persona, em um dos seus últimos trabalhos.

Os 12 trabalhos e Não por acaso têm como cenário a cidade de São Paulo. Sendo mais preciso: o trânsito da metrópole é um elemento primordial para os dois filmes, com abordagens diferentes. Em Os 12 trabalhos, de Ricardo Elias (já estreado em boa parte do país, com crítica na Cinética), a cidade de São Paulo é vista pelos olhos de um motoboy, e por isso mesmo as imagens estão sempre no nível da rua. O grande acerto do filme é a naturalidade com que apresenta Heracles, um jovem negro da periferia, ex-interno da Febem, em seu primeiro dia de trabalho como motoboy. Aqui temos um cenário urbano orgânico, que nunca engessa a narrativa. Excetuando-se algumas câmeras que estilizam o percurso das motos por entre os carros, as imagens servem à galeria de personagens com quem o protagonista trava contato enquanto faz entregas pela cidade.

Em Não por acaso, estréia em longa de Philippe Barcinski, a arquitetura de São Paulo é apresentada já na abertura a partir de uma tomada aérea. A cidade é vista como um complexo sistema de concreto e vias por onde as pessoas, invisíveis dessa distância, se locomovem por trajetos mais ou menos traçados e previstos. A mesma idéia é passada pelos planos esquemáticos de uma mesa de sinuca onde todas as tacadas são minuciosamente estudadas para antever a trajetória de cada bola. O elemento humano surge a partir dos dois protagonistas: Ênio (Leonardo Medeiros), um engenheiro de tráfego, e Pedro (Rodrigo Santoro), um jogador de sinuca. Ambos os personagens têm a obsessão pelo que pode ser calculado e controlado, como as imagens descritas acima explicitam. A vida dos dois muda com um acidente de carro envolvendo entes queridos. O drama que surge devido ao inesperado se apresenta ao longo de filme de forma latente, mas parece sempre brigar com esquematismo da própria narrativa. Os personagens têm força e são defendidos pelos atores com dedicação, mas não conseguem vencer as limitações que o filme, que pode ser visto como um interessante exercício de metalinguagem, lhes impõe.

Finalmente, tivemos o esperado Cão sem dono, de Beto Brant e Renato Ciasca, outra produção paulista, mas que se passa em Porto Alegre – e que acabou levando o prêmio de melhor filme pelo júri. Acompanhamos nele um momento da vida de Ciro, um jovem com aspirações literárias que tenta sobreviver com o trabalho de tradutor, enquanto se relaciona com uma modelo que tem planos de ir para Barcelona. Embora traga uma história essencialmente urbana, como os outros filmes citados, a cidade aqui quase não aparece como questão, a não ser através dos próprios personagens. A força está no texto, tão orgânico que parece ser transmitido sem maiores preocupações, como nas conversas cotidianas. Filme com muitos diálogos, e quase nenhuma ação, nele as atuações são tão naturais que às vezes parece que estamos invadindo a intimidade de pessoas reais.

Ao final da projeção do último filme, no último dia de festival, a sensação de cansaço é grande. Afinal, entre curtas e longas, foram exibidos 51 filmes em seis dias. Para o espectador interessado em aproveitar ao máximo a programação, são necessárias paciência e dedicação. Trabalho duro porque fica evidente que as condições em uma sala gigantesca superlotada nem sempre são as melhores para a apreciação das obras. Nesse processo, claro, alguns filmes saem mais prejudicados do que outros – o que permite, acima de tudo, este primeiro olhar acima descrito.


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