in loco - 5o cineop
O restauro e o encontro da experiência
por Paulo Santos Lima

Na Trilha do Bonde, de Virginia Flores, Rodolfo Caesar e
Alexandre Fenerich (Brasil, RJ, 2009)
Variante, de Pietro Picolomini e Ester Fer (Brasil, SP, 2010)

Reconstituir algo é, não poucas vezes no cinema, encenar. A experiência de uma determinada cena, ou situação, parece depender bastante de uma construção, de se construir algo. Quanto ao áudio, por exemplo, Na Trilha do Bonde é todo construção, criação livre de seus três diretores, Virginia Flores, Rodolfo Caesar e Alexandre Fenerich. São sons inseridos em imagens documentais, assinadas por sabe-se lá quem, referentes ao Rio de Janeiro dos anos 40 e um trecho dos anos 60.

Esse anonimato do autor dessas captações dá à câmera uma certa identidade própria, como se ela, nas tantas tomadas captadas a bordo dos bondes cariocas, fosse a própria fusão homem-câmera. A máquina, invisível mas atuante, tomando o espaço e o trazendo à tela. Imagens, por definição “matemática” (e simplificada, anterior e, certamente, ingênua), puras, diretas, “sem intervenção”, sem um dedo humano. Imagens frias, mecânicas, engrenais e, por conseguinte, sem alma. Nessas imagens fragmentadas que não foram nem editadas, a manipulação é ínfima, algo entre um still ou uma colorização em certo elemento na cena. São planos fortes, carregados de muita informação sobre uma metrópole de um tempo remoto, jamais indicado antes dos créditos finais. É na inserção sonora, reproduzindo quais ruídos poderia haver nessas cenas, como o rascar da correria dos bondes nos trilhos, pessoas passando, o comércio local etc, que o filme dá voz à experiência.

Os sons, por vezes, surgem sobrepostos aos “da rua”, mas remetendo aos arredores, como um trecho de diálogo entre Humphrey Bogart e Lauren Bacall em À Beira do Abismo (1946) quando a porta de um cinema aparece na tela. O que Na Trilha do Bonde consegue é um belo looping, ou seja, utilizar essas imagens para que se reencontre essas mesmas imagens com mais índices humanos, com mais substância material. No falseio que o cinema se permite, não é errado, assim, adicionar uma leva de criações pessoais dos cineastas para devolver vida (e contexto) ao material. Em outras palavras, num mundo (e cinema) tão ligados ao som e à palavra, o média não deixa de ser uma empreitada ilusionista, convidando o espectador ao mergulho naquelas imagens. A quem acha equivocadamente que o filme julga, ao passar por um túnel e chegar ao mesmo Rio de Janeiro dos anos 60, agora órfão de bondes e freqüentado por ônibus poluentes, fica ainda mais claro que a imersão se faz mais total quanto maior é a narrativização. De certo modo, nosso senso tende a narrativizar qualquer objeto à nossa frente, impondo-lhe um contexto e lógica dramática. Pois Na Trilha do Bonde, como seu título já expressa, está junto ao bonde e seus trilhos, à máquina e sua estética, que bem poderia ser a tal câmera (con)fundida ao bonde, o que é, por fim, a história da vida e morte de um estilo de vida, de um momento humano, de um certo homem que se foi junto ao esvaziamento dos trilhos.

Senão oposto, é bastante paralelo o processo de Variante, de Pietro Picolomini e Ester Fer. O filme também trabalha com adição de som sobre imagens captadas, muitas vezes som-imagem apresentados na tela em camadas sobrepostas, mas a lógica aqui não é a da inserção num momento ou situação, mas sim a da adição, o que significa que o formalismo dos enquadramentos e os sentidos obtidos pela movimentação dos elementos no quadro são parte de uma coleta de imagens que trazem uma “verdade” referente. Pegando o trajeto dos trens da CPTM entre Suzano e Estação da Luz, ida e volta, manhã e noite, Variante mostra dados “concretos”, como a pregação evangélica nos trens, os camelôs em movimento de escape de uma suposta fiscalização, outros comércios locais, as edificações ribeirinhas à linha férrea, o céu metropolitano. Um som que, de certo modo, dá conta de uma experiência a ver com muitos dos filmados, a narração radiofônica do popular programa de Gil Gomes, é quase um mantra que percorre boa parte da projeção (e do trajeto do trem pela linha).

Um tanto sutil (e difícil) de justificar em texto, mas o que Fer e Picolomini fazem não é estetizar seres e seus ambientes, mas encontrar a estética desses seres e seus ambientes. Temos cabos, ferros, trilhos, fazendo um emaranhado geométrico na tela. Há, também, grandes massas humanas entrando e saindo dos trens, câmera filmando-as um tanto do alto – mas, além do movimento, há de fato homens e mulheres trespassando os vagões. Encontrar a experiência dessas pessoas, cuja heterogeneidade pede a mesma fragmentação e coleta diversa e difusa de elementos ao longo do filme, é exemplar perto do que seria uma (hipócrita?) coleta de vozes, que seria mais a expressão de um indivíduo que, na verdade, jogo de cena, diria mais sobre os diretores e suas escolhas e bem menos do próprio entrevistado. Sem espaço “amigo” à voz de alguém, foge-se do ninguém e Variante estabelece muito bem sua coisificação, que é forte, mas concentrada apenas nas coisas que fazem parte do cotidiano dessas pessoas que usam os serviços da CPTM, das plataformas aos áudios de jogos de futebol. Aqui, no caso, a imagem já nos coloca perto da matéria desses espaços e seus seres, e os sons adicionam polivalentemente extratos das tantas experiências dessas pessoas. Experiências que se confundem com as próprias imagens geométricas e em moto-perpétuo, ou seja, experiências que encontram sua própria imagem.

Julho de 2010

editoria@revistacinetica.com.br

« Volta