in loco Abrindo
a estrada da vida (A partir do seminário
"Anos 60 em discussão") por Paulo
Santos Lima Três
homens em um fusca vermelho fazendo a ponte terrestre São Paulo-Rio. Andrea Tonacci
ao volante, Rogério ao lado. Sentado no banco traseiro, corpo e cabeça debruçados
para frente, está Glauber. Três dos maiores diretores de nossa história (cineastas
de invenção, de sangue quente à expressão de um mundo em perigo) no mesmo carro.
Glauber não parou de falar durante as seis horas de travessia asfáltica. O caudaloso
fluxo de palavras não abria o flanco para os da frente falarem. Foi assim que
souberam, de antemão, sobre aquilo que viria a ser Terra em Transe. A história,
contada pelo cineasta Andrea Tonacci na mesa “Glauber Rocha e Rogério Sganzerla:
inventividade dos anos 60”, a primeira das três que rediscutiram aspectos do cinema
brasileiro dos anos 60, descreve uma imagem-síntese sobre toda uma produção criativa
que ganhou impulso no correr daquela década, criando faíscas entre cineastas e
seus projetos, muitos encontros e desencontros de idéias num momento no qual os
posicionamentos tinham de ser ferozes, firmes como rocha, pois era o modo de se
ocupar um espaço sobre um mundo de caos e, com o cinema, tentar mudar esse mundo.
Além disso, essa passagem ricamente ilustrativa situa o
viés que preponderou nas três mesas que discutiram os anos 60 na 3ª CineOP: o
pessoal. Longe disso ser ruim, o que sai daqui é que, de fato, mexer na questão
“Glauber vs Sganzerla” (que é parte do todo, de uma legião de diretores modernos
respondendo ao mundo à sua maneira e afirmando que essa deveria ser “a maneira”)
é temer cutucar um vespeiro ou, de fato, não se possuir ferramentas de acesso
mais orgânico. Orgânico, aliás, é boa palavra: esta é uma discussão que durante
quatro décadas esteve tricotada com fios factuais e passionais, com alguns raríssimos
bordados mais científico-teóricos. Começar essa discussão a partir da experiência
pessoal de cada um dos palestrantes, nas três mesas, era mais que esperado. Assim
sendo, o que Andrea Tonacci, companheiro de Rogério (visto na foto ao lado) cujo
cinema experimental era igualmente amigo (o humor e a forma anárquicos em Bang
Bang é só um exemplo que interliga este maravilhoso experimento cinético que
Tonacci concluiu em 1970 a filmes de Sganzerla como A Mulher de Todos,
O Bandido da Luz Vermelha e HQ), disse a respeito de sua experiência
pessoal e sobre o que era o cinema para eles (nisso, automaticamente incluindo
Glauber e afins) e o que é, hoje, ainda para ele, um dos raros cineastas de resistência
no Brasil, foi uma ponte necessária para compreendermos a importância dessa discussão.
Um elo entre o coração e a mente. Uma fala fundamental para definir o que era
aquele cinema e o que se pode fazer hoje. E, assim, Tonacci falou sobre a sua
turma e a que está hoje por aí, ou seja, fez matéria una entre os anos 60 e anos
2000. Sua fala foi, assim, a que tocou na artéria da nova geração – de uma determinada
“nova geração”, que são alguns raros diante de um contexto boçal que delineia
a criação cinematográfica brasileira: alguns deles presentes no 3º CineOP, os
filhos de Glauber e Rogério, por exemplo. Houve, entre coisa
e outra, diversos relatos de cunho pessoal, epidérmico e sensorial que foram fundamentais
para definir essa. Assim como Andrea Tonacci, Helena Ignez e Paloma Rocha, por
exemplo, foram confirmações orgânicas (vivas, pulsações a mil em Ouro Preto) do
entrelaçamento que vez e outra havia entre as obras dos dois gênios. Mais que
Glauber e Rogério, que no final das contas deixaram suas obras para a degustação
de todos (como meio disse Cléber Eduardo, o que temos são os filmes... filmes,
textos, idéias – material não falta), parentes e próximos foram as grandes vítimas
dessas rivalidades entre Rogério e Glauber, que, mesmo reais, diziam mais respeito
a uma ocupação política com suas obras. Paloma Rocha, que conviveu nas duas casas,
elegante como sempre, não teve outro termo melhor para para definir o quanto ela
foi incomodada com essa história por muito tempo de sua vida: “saco cheio”. Curiosamente,
teóricos como Rubens Machado Jr. acabaram falando mais sobre uma urgência atual:
buscarmos novas ferramentas e novas gramáticas para lermos melhor esses filmes
sob o esquadro de nosso tempo. Falaram, (in)diretamente, algo vital sobre a proposta
que identifica o Festival de Cinema de Ouro Preto: a temática da preservação e
restauração de nosso acerto audiovisual. Afinal, construímos a nossa memória no
tempo presente, que cresce guiada por um DNA de outras memórias e objetos d’outros
tempos, que se fazem presentes por estarem “vivos” e em “nossa casa” (preservados
e acessíveis, de filmes a documentações diversas). Joel
Pizzini (ao lado) talvez tenha sido o coringa das mesas. Representando um “cinema
jovem”, embrenhado na salvação da obra de Glauber, genro de Rogério, fã de um
cinema de poesia, foi quem mais arriscou algumas “definições” sobre. Algumas um
tanto óbvias (mas necessárias para gente, como nós, que há 40 anos está com um
pensamento bastante artrítico sobre a mais expressiva produção cinematográfica
moderna brasileira); outras bastante interessantes, como trazer à mesa algo dito
por outrem, sobre o fim do cinema, do cinema como espaço de trocas de idéias e
debates, posição no mundo. Assunto que foi também trazido na mesma mesa 3 (“O
cinema brasileiro moderno: heranças e rupturas nos anos 2000”), que contou com
a jovem geração e tinha Joel de corpo presente. Foi
esta mesa, aliás, a que deixou algo a ser registrado. A relação dos integrantes
com Glauber e Rogério era igualmente romântica, sanguínea, existencial, mas isso
está mais para um ponto de partida. Não que Helena e Paloma, por exemplo, também
não estivessem olhando além do horizonte sganzerla-glauberiano, mas a relação
dos filhos é outra a partir do fato de que Djin Sganzerla (foto), Eryk e Pedro
Paulo Rocha criaram uma relação menos direta e mais dialética com seus pais. Usaram
obra e convívio pessoal com os seus como uma espécie de composto, de aditivo,
para seu processo criativo. No relato mais tocante dessa mesa, Djin destrincha
o quanto quis estar à parte dessa herança, e o quanto isso foi vindo naturalmente,
como um caminho de vida, e suas intenções criativas foram coincidindo com as de
seus pais (Meu Nome É Dindi, de Bruno Safadi, é um belo exemplo). Notável,
porque a herança é de Djin e de todos nós, uma vez que os feitos nos 60 e 70 reverberam
hoje, inclusive como negação, por parte de uns tantos cineastas que são verdadeiros
anti-exemplos de Tonacci, Bressane, Snganzerla e Glauber e cujos “cinemas de resultado”
são a antítese de um cinema de invenção. Daí que essa terceira
mesa, iluminada, é um marco do mesmo relevo do encontro das famílias na abertura
do 3º CineOP. O projeto Kynemas, de Pedro Paulo, ou a visão muito aguda dele e
de seu irmão Eryk sobre o passado ser o presente e o futuro, ou seja, um passado
que está sempre em transformação (palavras que dão conta de justificar na prática
a importância de se preservar materiais além do mero arquivismo, como construção
de uma memória biológica, em moto perpétuo), ou o também presente Daniel Caetano
tendo assinado um dos filmes mais anárquicos e críticos desse nosso momento (Conceição
– Autor Bom É Autor Morto), tudo isso rompe com a mera reverência, derrete
os tabus gerados. Tabus canalhas, porque valorizaram e santificaram na mesma medida
em que mumificaram essas idéias e posições cinéticas tão valiosas; deixaram as
idéias de Glauber e Rogério para além de nossa galáxia. Faltou,
certamente, esmiuçar um tanto mais sobre as obras de Sganzerla e de Glauber, uma
vez que o que temos à mão são mitigações e falsas ferramentas que fingem um dar
conta que é impossível, no nível que está (e sempre esteve) o debate acerca a
produção moderna (são raros e valiosíssimos os arejamentos trazidos por Ismail
Xavier, Jean-Claude Bernardet e alguns outros sobre nossa produção moderna). Mas,
por outro lado, as discussões do 3o CineOP abriram uma ferida que ficou sendo
contemplada como chaga sagrada. Aberta, a fenda deixa escorrer e também deixa
ser vista. O importante, disso tudo, é que as viúvas, a mãe, genro e os filhos
de Glauber Rocha e de Rogério Sganzerla demonstraram que voltarmos aos anos 60
pelas placas Glauber+Sganzerla não é um retorno ao passado, mas sim um exercício
crítico sobre a mais rica herança de nosso cinema. Arrisco
dizer, sob risco de vaias e metralhas, que é a nossa maior herança criativa, maior
que a música e a literatura, porque total: de uma arte nascida no século 20, feitas
por alguns grandes que souberam costurar juntos as letras, as músicas, os sons,
arquiteturas, artes plásticas, imagens em movimento e, principalmente a idéias.
Tudo isso são palavras, aqui, e que somente num encontro que mostrou ainda certos
cuidados, dores, saudades, assim como afetos, pulsões, cinemas filhos, pronunciamentos
jamais ouvidos de quem esteve “do lado de lá” e ânsias políticas, podem fazer
algum sentido. Boçal quem achar que a idéia era encontrar certezas... a caixa
de Pandora foi aberta. O pecado tem de ser de todos nós. Junho
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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