história(s) do cinema brasileiro
O cinema popular brasileiro do século 21 - Parte 1
por Leonardo Mecchi

O que seria um cinema popular brasileiro dos anos 2000? O que atrai hoje o grande público a um filme nacional? Raramente analisados em conjunto, os filmes populares podem trazer muitas informações e revelações sobre um determinado estado das coisas do cinema brasileiro contemporâneo – e, principalmente, sobre seu público médio.

Porém, antes de mais nada, é preciso conceitualizar o que seria esse “cinema popular”. Normalmente, denomina-se cinema popular aquele que atinge grandes números nas bilheterias do circuito comercial. Tal definição, entretanto, pode trazer – como tem trazido – uma série de interpretações errôneas, quando não nocivas, sobre o que é (ou deveria ser) o cinema brasileiro que encontra eco junto ao grande público. Primeiramente porque, num país onde a totalidade das salas de cinema encontra-se concentrada em apenas 7% dos municípios e o preço dos ingressos está entre os mais caros do mundo (numa lista de 52 países, o Brasil aparece em 12º lugar entre os mais caros), dificilmente pode-se caracterizar o cinema como uma atividade “popular”. Quando levamos em consideração os números das bilheterias para se determinar a popularidade de um filme, estamos na verdade medindo seu apelo junto a um público bastante específico: o de uma determinada classe média e alta, cada vez mais reduzida.

Mesmo que o “ir ao cinema” efetivamente se popularizasse, ainda assim os números das bilheterias deixariam de fora toda uma parcela do público que tem acesso aos filmes brasileiros fora do circuito exibidor tradicional, através de mostras, festivais e outras exibições não-comerciais (muitas vezes criadas justamente para suprir uma demanda gerada pela ausência de salas de cinema fora dos grandes centros). No atual panorama do cinema brasileiro, muitos filmes conseguem nessas exibições alternativas um público muito superior àquele pagante nas salas do circuito comercial.

Por fim, a “popularidade” de um filme se mede também pela reação e relação que causa junto ao público durante a sessão. Popularidade não é determinada apenas pelo número de pessoas que assistiram ao filme, mas também pela apreciação e envolvimento daqueles que efetivamente o viram. Assim, um filme como Serras da Desordem, que dificilmente atingirá grandes números na bilheteria quando estrear, manteve ao longo de suas mais de duas horas de duração uma lotação máxima de 700 pessoas numa sessão efetivamente popular (entrada gratuita, público não-especializado e diversificado) da Mostra de Tiradentes. E isso, afinal, também é cinema popular.

Feitas essas ressalvas, iremos nos ater nesta análise ao senso comum da expressão “cinema popular”: aquele que se destaca nas bilheterias comerciais. Se analisarmos as maiores bilheterias nacionais deste século XXI (quadro ao lado), veremos que alguns traços comuns ajudam a definir uma determinada preferência do público em sua relação com o cinema brasileiro – preferência essa que, muitas vezes, confirma uma tendência quando observamos as bilheterias de filmes brasileiros nas últimas quatro décadas. E é possível avaliarmos também como as políticas públicas e as características do mercado cinematográfico ajudam a definir o tipo de cinema que alcança as graças do público.

A realidade ma non troppo

A primeira característica que salta aos olhos ao analisarmos as maiores bilheterias brasileiras de 2000 para cá é uma predominância do que se chamará aqui de “filme-verismo”, ou seja: aquele que busca sua legitimação na representação de um determinado aspecto da nossa realidade (seja uma vida, um período, um evento). Poderiam ser enquadrados nessa categoria 5 das 10 maiores bilheterias do período: Dois Filhos de Francisco (2005, 5.3 milhões de espectadores), Carandiru (2003, 4.7 milhões), Cidade de Deus (2002, 3.4 milhões), Cazuza: O Tempo Não Pára (2004, 3.1 milhões) e Olga (2004, 3.1 milhões). Esse interesse pela “realidade” – confirmado em alguma medida pelo boom de documentários nesse período, que em 2006 chegaram a quase 30% das estréias nacionais – não se dá, entretanto, sem um certo verniz (estético e/ou narrativo) que preserve o espectador de um contato “excessivamente direto” com essa realidade, por razões que veremos mais adiante.

Peguemos o exemplo de Dois Filhos de Francisco, maior bilheteria brasileira dos últimos 25 anos. A chave do sucesso de Breno Silveira foi ter conseguido fazer um filme que tivesse um apelo tal junto às camadas mais populares que os levasse de volta ao cinema (hábito que já haviam perdido há muitos anos), ao mesmo tempo em que mantivesse um “padrão de qualidade” que não afastasse a classe média, que compõe atualmente a quase totalidade do público de cinema. Dessa forma, contou-se sim a história de uma das mais populares duplas caipiras do Brasil (grande atrativo para a população de mais baixa renda), mas com uma fotografia que valorizasse a beleza do interior do país, onde mesmo a pobreza fosse retratada de uma maneira digna e que mostrasse uma história de superação e sucesso (demandas do “gosto médio” do espectador). Muitas dessas características, inclusive, já podiam ser observadas em um filme como Central do Brasil (1998, 1.2 milhão), que figura entre as 10 maiores bilheterias da década de 90.

Esse cuidado por atrair um amplo espectro de público pode ser visto em pequenos detalhes, como a ausência do nome da dupla no título do filme (que poderia gerar uma rejeição na parcela de mais alta renda) e em seu uso da música. Um filme biográfico sobre as origens de Zezé di Camargo e Luciano não poderia existir sem que em sua trilha houvesse músicas sertanejas. Esse gênero, entretanto, é visto como algo “popular” demais por parte da população mais abastada. Breno Silveira, então, utilizou-se de um expediente bastante inteligente: usa ao longo do filme interpretações de Ney Matogrosso e Caetano Veloso (artistas considerados “nobres” pela classe média), e o grande sucesso de Zezé di Camargo e Luciano, “É o amor”, não é cantado pela dupla antes que Maria Bethânia a legitime em sua interpretação.

Carandiru e Cidade de Deus também apresentam filtros para que o espectador não “suje as mãos” no sangue que é derramado na tela. Seja por um intermediário entre o espectador e os fatos (o médico no primeiro, Buscapé no segundo), seja por opções dramáticas que aliviem esse realismo (o caráter espetacular do primeiro – em particular nas cenas do massacre –, a agilidade pop do segundo). Cazuza, em suas intenções mais modestas, não deixa também de amenizar o homossexualismo e o envolvimento com as drogas de seu retratado. Já em Olga, é o uso ostensivo da música e a dramaticidade exacerbada de suas cenas que servem como véu entre o espectador e a realidade retratada.

Embora seja fácil caracterizar essa resistência em expor um retrato sem filtros da realidade, é mais interessante notar como todos esses filmes, sem exceção, fazem questão de ressaltar seu vínculo à realidade com cenas documentais e até mesmo com os tradicionais letreiros “inspirado em fatos reais”:  em Dois Filhos de Francisco, por exemplo, a realidade se mescla à ficção em seu final, quando o sucesso diegético da canção “É o amor” se funde à interpretação (real) da dupla sertaneja em um de seus shows, tendo continuidade em um mini-documentário sobre o retorno dos dois irmãos à casa de infância que serviu de cenário à primeira parte do filme. Em Carandiru temos o peso das imagens da demolição do presídio (acima) a impor, juntamente com os tradicionais créditos que informam o que ocorreu após o término do filme, a realidade sobre a ficcionalização exibida até então. A mesma imposição do real se produz nos créditos dos demais filmes-verismo, através de fotos e trechos de reportagens sobre os personagens reais que inspiraram o filme (Cidade de Deus), vídeos caseiros de seu retratado (Cazuza) ou letreiros informando os fatos posteriores ao período retratado no filme (Olga).

O filme-verismo sempre esteve presente, com maior ou menor força, entre as maiores bilheterias brasileiras dos últimos 40 anos. Na década de 70, tivemos Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1977, 5.4 milhões), Xica da Silva (1976, 3.2 milhões) e Independência ou Morte (1972, 2.9 milhões). Nos anos 80, Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980, 2.5 milhões), e nos anos 90 tivemos dois exemplares entre as maiores bilheterias da década – que de fato esgarçam as fronteiras do filme-verismo, mas que ainda assim têm a realidade como credor de sua legitimação: Carlota Joaquina (1995, 1.3 milhão) e Central do Brasil (1998, 1.2 milhão).

No caso do primeiro, embora busque num fato histórico a inspiração de seu enredo (a chegada da corte portuguesa ao Brasil no início do século XIX), ele se aproxima desse objeto não através da emulação de um realismo (seja nas imagens, seja no enredo), mas sim através da exacerbação de seu caráter cômico. Carla Camurati foi buscar na chanchada, um gênero extremamente popular entre as décadas de 30 e 60, a chave para registrar aquele período histórico. Dessa forma, foi possível reproduzir na tela a relação dúbia do espectador com seu próprio país, após esse período traumático da ditadura e de uma redemocratização conturbada, porém pelo viés do humor, o que facilitava a aceitação por parte da platéia.

Central do Brasil vai se fiar na utilização de não-atores em retratos quase documentais, uma característica que naquele momento não era algo usual, mas que, a partir daí, passa a ser bastante utilizada em uma determinada parcela da produção brasileira, justamente na esteira dessa valorização do “real”. Esse artifício pode ser observado no filme de Walter Salles em cenas como a de abertura (onde vemos em primeiro plano vários transeuntes da verdadeira Central do Brasil ditando cartas para a personagem de Fernanda Montenegro) ou em outras da jornada de seus protagonistas pelo interior do país, como aquela em que Dora e Josué pegam carona em um caminhão que transporta trabalhadores rurais ou na festa religiosa onde Dora procura Josué – cenas nas quais vemos novamente o olhar documental de Walter Salles a perscrutar aqueles rostos anônimos e reais.

Franchising à moda brasileira

Além do filme-verismo, vemos na lista das maiores bilheterias dos anos 2000 outro exemplar bastante presente entre as grandes bilheterias dos últimos 40 anos: o filme-franquia. Trata-se de obras cujo maior apelo junto ao público se baseia na presença de personalidades prévias, na maioria das vezes oriundas de programas televisivos, e que normalmente acabam por gerar outros filmes da mesma franquia, numa espécie de versão das continuações dos blockbusters norte-americanos.

Na década de 70, os filmes-franquia atingiram o auge de sua popularidade, em especial nas produções dos Trapalhões e Mazzaropi. Dos primeiros, foram lançados nada menos do que 10 filmes na década, que juntos ultrapassaram a marca de 35 milhões de espectadores. Já Mazzaropi, com um filme a menos, fez no mesmo período aproximadamente 26 milhões de espectadores. Como referência, apenas essas duas franquias da década de 70, juntas, tiveram mais que o dobro de todo o público do cinema nacional da década de 90. Tal sucesso popular – sem precedentes (e muito menos descendentes) no cinema brasileiro – só foi possível devido a uma confluência de fatores.

Trata-se do período de ouro da Embrafilme, criada em 1969 e responsável pela distribuição das quatro maiores bilheterias da década. Nesse período, o cinema brasileiro alcançou grande penetração no mercado, chegando em 1978 ao recorde histórico de quase 62 milhões de espectadores para os filmes brasileiros. Isso foi possível graças a uma política pública conjunta e articulada, que atuava simultaneamente nos diversos segmentos do mercado (a Embrafilme, por exemplo, acumulava as funções de produtora e distribuidora, além de padronizar e controlar os ingressos vendidos nos cinemas), além de um considerável parque exibidor fora dos grandes centros, que atingiu seu ápice em 1975, com 3276 salas de cinema espalhadas pelo país. Essa disseminação de salas de cinema fora dos grandes centros foi uma condição essencial para o fortalecimento do cinema brasileiro nessa década, pois o interior sempre foi um território bastante receptivo ao filme brasileiro – seja pela menor disponibilidade de opções de lazer, pela identificação de seu público com o Brasil retratado na tela ou ainda pela resistência a filmes legendados.

A conquista de territórios para o cinema brasileiro, entretanto, não se dava apenas nas cidades do interior, mas também nas grandes metrópoles. Em artigo publicado no jornal Zero Hora em maio de 1978, de Jean-Claude Bernardet noticiava que, na última quinzena de abril daquele ano, 90% das salas de cinema de São Paulo exibiam filmes brasileiros, numa situação oposta a que enfrentamos recentemente, no final de Junho de 2007, quando 98% das salas de cinema do país estavam ocupadas por produções norte-americanas.

A partir de 1983, entretanto, o cinema brasileiro sofre o baque da crise política e econômica que se abate sobre o país. Trata-se do fim da ditadura militar, época das Diretas Já, hiperinflação e desvalorização cambial. Acrescente-se a isso o boom do vídeo-cassete nesse período, que possibilitou ao espectador pela primeira vez a opção de se assistir aos filmes em casa no horário de preferência, e está instaurada a crise no cinema brasileiro. Daí que, excetuando-se a franquia Trapalhões, praticamente todos os filmes que atingiram um grande público naquela década foram lançados entre 1980 e 1982, quando os efeitos da crise ainda não se faziam sentir tão fortemente. Em 10 anos, o parque exibidor brasileiro cai das 3.276 salas existentes em 1975, para apenas 1.553 em 1984. A maioria dessas salas fechadas se localizavam em cidades do interior, o que prejudica ainda mais o público do cinema nacional. No mesmo período, o público total do cinema sofre uma queda de 67%. Os filmes brasileiros haviam iniciado a década com 51 milhões de espectadores por ano e terminava com apenas 20 milhões/ano.

Em função disso, na década de 80, os filmes-franquia dos Trapalhões, embora com uma queda considerável em sua média de público, reinaram absolutos, respondendo por 9 das 10 maiores bilheterias do período. Mesmo nos terríveis anos 90, dos 11 filmes que conseguiram se manter acima de 1 milhão de espectadores, cinco são da franquia Trapalhões, dois da Xuxa e um é a sub-franquia Sonho de Verão (1990, 1.7 milhão), que tem como principal atração as Paquitas.

Com o restabelecimento da produção nacional a partir de 1995, através do surgimento das leis de incentivo, filmes não vinculados a produtos televisivos conseguem finalmente chegar ao grande público, mas os filmes-franquia continuam a demonstrar sua força. Nas 10 maiores bilheterias do século XXI, eles são representados por dois filmes da Xuxa e Os Normais (2003, 3 milhões). Se estendermos a pesquisa às 20 maiores bilheterias do período, teremos mais 5 exemplares: A Grande Família (2007, 2 milhões), Didi – O Cupido Trapalhão (2003, 1.8 milhão) e mais três filmes da Xuxa.

Mesmo Se Eu Fosse Você (2006, 3.6 milhões), embora não seja derivado diretamente de um programa de TV, beneficiou-se da enorme penetração desse veículo em todas as camadas da população, uma vez que ao menos parte de seu sucesso pode ser creditado ao fato de que, simultaneamente à sua estréia comercial, a Rede Globo exibia a novela Belíssima, que apresentava o mesmo casal de protagonistas do filme (Tony Ramos e Glórias Pires) como um par romântico em sua trama.

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