em primeira pessoa Lembranças
de cinema na capital por Lila Foster
Voltar para casa e a família é sempre bom – e a minha
casa é Brasília, longe da fumaceira de São Paulo. Todo ano é a mesma coisa: Natal,
cozido da tia, cachoeira, amigos com filhos e muita rememoração. Nesse balaio
é inevitável que as lembranças das idas ao cinema durante a infância e a adolescência
aflorem. Brasília
nunca foi uma cidade cinéfila, como tantas outras cidades. Não por falta de interesse,
mas porque tudo nesta cidade planejada é muito disperso – não por acaso a vida
cinematográfica na cidade deve muito à concentração incentivada pela UnB (Universidade
de Brasília). No final dos anos 80 só me lembro de 4 cinemas na cidade (número
passível de refutação, já que consta na minha memória e não necessariamente em
um censo local): Cine Karim (110 sul); Cine Atlântida (Conic); o Márcia, no Conjunto
Nacional; e o Cine Brasília. Os três primeiros estavam sempre
lotados no fim de semana e era freqüente, uma vez finda a sessão, ver alguém pegando
o seu carro com vidros quebrados e sem o som, ou qualquer outra coisa (a Brasília
do meu pai – o carro, digo – já tinha sido roubada duas vezes). Cidade dos carros,
poucos eram os cinemas onde se podia ir a pé – com exceção do Cine Karim e o Cine
Brasília que, não por coincidência, ficam nas “quadras modelo” que previam a cada
entre-quadra uma escola, uma unidade vizinhança e um prédio dedicado à cultura.
O Cine Karim tinha sempre filas imensas e era o típico cinema
da infância, onde me recordo de ter assistido muitos filmes durante as férias
escolares. O Cine Atlântida ficava num ambiente menos familiar, o Conic (no irônico
SDS, Setor de Diversões Sul), um dos poucos lugares em Brasília onde se pode sentir
a convivência dos “opostos”: sindicatos, igrejas, sex shops, sinucas, danceterias,
lojas de material fotográfico, escolas de teatro, escritórios. Não foi à toa que
José Eduardo Belmonte escolheu este espaço como cenário-personagem do seu filme
Subterrâneos. Para quem vive no Plano Piloto (leia-se classe média) são
poucos os espaços visualmente caótico,s e o Cine Atlântida ficava no meio desta
“confusão”. Era o cinema que, quando saíamos e já estava escuro, o passo era mais
apressado – como se fosse necessário fugir do não planejado, de tudo que não é
reto e visualmente acessível. Os dois cinemas – adivinha?
– viraram igrejas. As duas últimas sessões que assisti no Karim aconteceram durante
um relançamento de filmes da Warner: Bonnie and Clyde e Meu Ódio Será
sua Herança, do Sam Peckinpah. O Márcia fechou não tem muito tempo, acho que
era o maior cinema da cidade depois do Cine Brasília, e é claro que não resistiu
aos vários cinemas de shopping moderníssimos. Mais confortáveis? Talvez sim, mas
era bom demais escorregar na cadeira de couro vermelho diante daquelas telas gigantes
comendo cigarro de chocolate. O Cine Brasília, sede do Festival,
sempre esteve ali, fortão, resistindo aos rumores e ameaças reais de fechamento.
Definiria como o cinema da minha adolescência, porque foram muitas as descobertas
feitas ali, principalmente quando tinha três filmes diferentes por dia às 15,
17 e 19hrs. A primeira descoberta: o cinema brasileiro, com fortes lembranças
de Terra Estrangeira (filme que ainda é o que mais gosto do Walter Salles)
e As Meninas, de Emiliano Ribeiro – baseado em projeto original de David
Neves. Duas mostras completas foram importantes: Truffaut e Joaquim Pedro de Andrade.
E, claro, o mais emocionante: o Festival de Brasília, com sala lotadíssima (com
os quase 1000 lugares dali) para os inesquecíveis Tudo é Brasil, Miramar
e São Jerônimo. Metade do cinema levantava no meio dessas sessões, mas
era importante resistir à dificuldade e encantamento que eles impunham, e voltar
para casa com a cabeça cheia de cinema (e cerveja). Na
época da faculdade havia ainda o Cine Dois Candangos, cinema da universidade que
tinha ficado muito tempo fechado por falta de dinheiro. A programação tinha muito
filme iraniano – moda na época. Lá eu assisti uma mostra com os filmes do Gabriel
Figueroa e lembro de Pueblerina de Emílio Fernandez e El da fase
mexicana do Buñuel. E o cinema da Cultura Inglesa, que mesmo com uma salinha bem
pequena sediou algumas mostras dedicadas ao cinema brasiliense e foi um espaço
forte durante anos. Mantinha sua programação de qualidade passando clássicos como
A Balada de Narayama do Imamura e filmes de diretores alemães com Herzog
e Fassbinder (o Instituto Goethe sempre ajudou muito). Hoje
em dia a cidade tem uma rica opção de cinemas e programações – graças ao CCBB,
ao Cine Academia (sede do Festival Internacional de Cinema) e os shoppings de
sempre. No entanto, são cinemas extremamente distantes. Nestes dias de férias,
o Cine Brasília, que dá para ir a pé, estava passando Cidade de Deus e
Madame Satã. Por preguiça (ou falta de vontade de revê-los?) preferi me
afundar no sofá e aproveitar o DVD player – objeto que, por incrível que pareça,
não possuo ainda em SP. Uma ida à locadora local (mais precisamente num posto
de gasolina) me surpreendeu pela variedade de filmes disponíveis. Em Brasília,
para assistir Orson Welles ou os ditos “filmes de arte” era preciso ir até a locadora
Oscarito na Asa Norte, e torcer para que ninguém tivesse pegado ou atrasado o
filme tão desejado, muitas vezes necessário para cumprir os trabalhos das matérias
na Faculdade de Cinema da Unb. Outra surpresa foi ver a quantidade de filmes brasileiros
lançados em DVD e perceber que a prateleira não está relegada àquele cantinho
imundo, mas fica ali, em primeiro plano. Ou seja: como na
maioria das grandes cidades brasileiras, os cinemas de bairro se foram mas o acesso
aos filmes se ampliou com os novos centros culturais e maior disponibilidade através
de lançamentos em DVD. Os filmes estão mais disponíveis, mas os cinemas estão
cada vez mais distantes. O sobrevivente Cine Brasília, apesar de encher durante
mostras especiais, fica muito vazio durante a semana o que não deixa de ser triste
pelo potencial e beleza que possui. É importante que um cinema como esse, por
ser tombado e mantido pelo GDF, se sustente não só como sede do Festival, mas
que preserve sua tradição como formador de público e mantenha a possibilidade
de uma forma especial de se relacionar com os filmes e a cidade. Afinal, depois
de uma boa sessão de cinema é muito melhor conversar com as árvores do que com
os sapatos em promoção. editoria@revistacinetica.com.br
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