ensaios
Complexo de brasilidade
por Francis Vogner dos Reis

Classificações generalizantes podem incorrer no erro de reduzir uma análise ou uma crítica a um prontuário por demais definidor de uma questão, já que as classificações existem e se propõem a resumir eventuais características de seus objetos. Ao falar sobre a conjugação "Cinema-Brasil", pode-se resvalar também nesse tipo de raciocínio e estratégia, de categorização redutora, que se escora na definição de características da identidade nacional, deixando de lado outros aspectos mais específicos do cinema como meio de expressão. Como falou uma vez  o crítico Inácio Araújo, o cinema brasileiro é assunto antes de ser cinema. Nunca deixou de ser um "assunto" e vive sob o estigma de ser um "assunto", uma equação interminável.

Quase todo cineasta novo que abre a boca pra falar do próprio filme busca localizá-lo no panorama do cinema brasileiro e, claro, de uma maneira que chama a responsabilidade para si, o que é perfeitamente compreensível, já que todos sofrem de ser Brasil.  Há casos estranhos daqueles que logo na largada já se consideram cineastas com vocação para o sucesso ("é pecado ter sucesso no Brasil") e, conseqüentemente, tornam-se dissidentes do cinema brasileiro, de modo a quebrar o estigma do fracasso com o qual este é vinculado. Curioso é que os resultados na bilheteria - suposto termômetro de "sucesso" - não responde à pretensa vocação. Alguns cineastas mais jovens, como Paulo Sacramento e Beto Brant, são dos poucos que, no lançamento de seus últimos filmes, não embarcaram nessa retórica. Falaram de seus trabalhos não como porta-vozes de uma "questão", mas como realizadores de cinema.  Nem a "apatia" de um John Ford, nem o "messianismo" de um Glauber Rocha.

Falar de cinema e Brasil, ou de cinema brasileiro, é chamar a responsabilidade. É como falar em nome de uma instituição ou de um clube fechado em que algumas regras devem ser acatadas de antemão. Uma delas é que o cinema brasileiro sofre justamente uma crise institucional aguda e constante. Crise de valores, crise de infra-estrutura, crise política em seus mais diversos aspectos. Algo difícil de contestar.  Na classe cinematográfica, fala-se muito de dinheiro e pouco de estética, como se essa fosse uma crise de menor relevância. Muitos dos próprios filmes feitos no país refletem essa insegurança de fazer parte desse clube e ter de representá-lo. Geralmente quando se discute estética, o que vem a reboque? A necessária representação de "Brasil".

Em princípio não há problema algum, já que representar o Brasil é uma questão que um filme, sendo brasileiro, se vê atado mesmo que não seja de maneira totalizante. O problema, realmente sério e que esgota a discussão, é invariavelmente criar hipóteses sobre um modo justo, melhor ou mais autêntico de se representar o Brasil, invertendo a sentença godardiana para "não justo uma imagem, mas uma imagem justa". A busca de quem somos, de nossas "raízes", de nossa "cultura", do Brasil profundo, seria um serviço à "nossa identidade", um reforço ao mito de povo. A busca de um olhar mais definidor que expressasse melhor a nossa realidade - como se ela fosse um bloco monolítico - foi o raciocínio que transformou Glauber e o Cinema Novo em bodes expiatórios desse discurso e que aliou uma espécie de resistência cultural à esquerda (que lutava contra a hegemonia do "Império Americano") a um nacionalismo à direita, tendo na Embrafilme uma cristalização desse processo. O que ficou foi a perspectiva de certa imagem do Brasil, a serviço menos de uma idéia e mais de um ideal. A ideologia da Embrafilme ainda é um fantasma.

Espelho, espelho meu...

Se o equívoco está na análise crítica do discurso de brasilidade via Cinema Novo e Glauber, o erro está também em transformá-los em sinônimos de cinema brasileiro. Quando se fala em Cinema Novo é impossível não falar "brasileiro" (identidade a fórceps). Ele foi transformado em uma instituição. Outro equívoco seria dizer que a responsabilidade disso é de Glauber Rocha e do Cinema Novo. O fato é que o movimento foi agregado a uma espécie de má consciência que até hoje se utiliza desse discurso pra legitimar o que está sendo realizado, como a famosa frase de Paulo Emílio Salles Gomes ("o pior filme brasileiro interessa mais que o melhor estrangeiro" ou algo do tipo), que virou palavra de ordem "chapa branca". É só lembrarmos do falecido jornalista Vladimir Herzog, entusiasmado com a Embrafilme, dando depoimento em que dizia: "Tem-se um prejuízo estético, mas se ganha em público". O documentário de Silvio Tendler, Glauber - O Filme, Labirinto do Brasil, que domestica Glauber nesse tipo de lógica, é manifestação sintomática desse quadro. E o prêmio da crítica recebido no Festival de Brasília talvez seja um outro sintoma.

O que toda essa situação nos leva a questionar é: a essa altura dos acontecimentos, o que exatamente significa identidade brasileira? Certamente não se liga mais a uma concepção de purismo cultural ou de Brasil profundo, tema de acalorados debates no nosso passado recente. O que há, sobretudo no meio intelectual, é uma forte posição de resistência cultural, um pouco temerosa da cultura de massa e bastante ressabiada da influência norte-americana. A TV e a invasão do cinema americano são os principais alvos dessas suspeitas, já que são considerados agentes de domesticação do olhar e inventários de imagens falsas. Talvez daí venha o esforço que visa criar uma espécie de efeito-espelho que revele quem somos nós e onde nós estamos, pois a oferta de imagens hoje é muito grande (publicidade, internet, televisão a cabo, cinema) e o indíviduo parece deslocado e impotente perante os diversos simulacros, perdido ante a dissolução de fronteiras do mundo contemporâneo que as novas tecnologias da imagem nos impõe.

Por isso, esse reforço de identidade e territorialidade (como nos filmes de Walter Salles e Guel Arraes, certamente os maiores exemplos dessa nova mentalidade) tem herança no Cinema Novo, mas não consegue compreender a configuração atual do mundo e do indivíduo e localizar o Brasil no meio disso tudo. Daí o esforço de reintegrar o brasileiro ao Brasil, de restabelecer limites, de jogar luz para as vastidões continentais do país e sua cultura independente de tendências e modismos. Uma esforço anti-globalização, uma reação ao complexo de colônia somado à nostalgia de um país que não aconteceu. O novo homem do Brasil é ainda o antigo, segundo essa ótica. E a tentativa de desobstruir o olhar é uma resistência sim, mas que circunda mais o ideal do que o real. A resposta a essa euforia certamente não é satisfatória, porque aposta na teoria cínica e impotente da vocação para o fracasso, do homem subdesenvolvido que não consegue nada além de se boicotar sistematicamente. Sérgio Bianchi talvez seja a voz mais representativa dessa concepção de "país". Todos esses olhares (e posições de Salles a Bianchi) procuram definir um "sentir-se brasileiro". Entre o "resgate" e a "destruição", ambas visões não nos deixam algo de realmente relevante.

O Brasil, como um todo, é ainda o grande tema e o grande problema, o que contamina fortemente o próprio pensamento sobre cinema brasileiro. Como falar de estética se ela necessariamente está vinculada a uma representação ou um sentimento de brasilidade, mesmo que num movimento de negação? Portanto, esses pontos de partida "críticos" podem eclipsar elementos estéticos interessantes dos filmes, a despeito de julgá-los bons ou ruins, certos ou errados. Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, são exemplos de filmes que sofreram com pré-disposições críticas. No filme de Meirelles, as impressões e análises negativas vinham no sentido de criticar os códigos herdados do cinema norte-americano e o choque descaracterizante que isso causou na representação dos moradores e dos problemas sociais da comunidade filmada. Já em relação ao filme de Sacramento, muitas das críticas positivas residiam no comentário de uma aparente ideologia de abordagem documental, supostamente "democrática" e  "humanizante". A tentativa de enquadrá-los na tradição do cinema brasileiro impossibilitou qualquer análise mais interessante do fenômeno estético, cultural e social que ambos representaram. Ser brasileiros mais os atrapalhou do que os ajudou.

Quem conhece as publicações de cinema de nossos vizinhos argentinos (El Amante, Film e recentemente as revistas eletrônicas Cineismo e Otrocampo) sabe que a discussão sobre cinema de maneira geral não busca abrir exceção ou transformar a linguagem em tema nacional - de maneira autofágica. O "cinema argentino", não cria dentro do próprio país um gueto ou faz do próprio cinema um sub-gênero em que o ponto de partida para pensá-lo seria mais cultural que estético. Pode se dizer que as histórias dos países são diferentes e que a comparação não procede, o que seria uma saída fácil, pois um dia no passado se convencionou falar de cinema latino-americano como um bloco.

Toda a questão da cultura nacional não deve passar despercebida, inclusive por quem se propõe a pensar o cinema. Mas também é justamente ai o ponto de desvio: subordinar toda reflexão e produção artística a uma prioridade de "repensar" o país. É injusto, sem criatividade e até mesmo covarde usar o Brasil como "alfa e ômega", princípio e fim de todas as coisas. A responsabilidade pelo Brasil é penosa e "generosamente" dividida entre todos. É triste, porque se escorar no mesmo repertório para se refletir ou para se fazer um filme é coisa realmente a se lamentar, a prova que estamos presos a uma infindável teia de questões do subdesenvolvimento que nos limitam ver além do nosso "quintal".

 

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