in loco - III jornada de cinema silencioso
O cinema, sempre inventado
por Cléber Eduardo

Tanto no título da mostra que exibiu dezenas de Lumière (Jornada do Cinema Silencioso) quanto no título do texto de Lila Foster (“Oi, prazer: eu sou o Cinema”) sobre os mesmos Lumière, a palavra cinema incorpora filmes de um plano só. Isso nos remete a pergunta bazaniana (“O que é o Cinema?”), e reestimula uma reflexão sobre sua origem (“Quando nasceu o cinema?”), que, pela primeira parte do titulo de Lila (Oi, Prazer), é responsabilidade dos Lumière – ou ao menos do momento de seus primeiros filmes, os últimos anos do século 19. O mesmo Bazin achava que, se o cinema nasce com as imagens da companhia Lumière, foi inventado com atraso. Desde a lanterna mágica, o homem queria inventá-lo, mas lhe faltava a técnica. Bazin vincula o conceito de cinema à reposição da ambigüidade do mundo ao mundo das imagens e ao caráter centrífugo dessa imagem em movimento no mundo diegético – movimento do centro para as bordas e não das bordas para o centro como em quase toda a história da pintura. Faz sentido, por isso, ver nos Lumière, para além do fato da primeira sessão, os inventores do cinema. Em boa parte de seus filminhos, a imagem transborda o quadro e, por não haver enunciação, mas captura de instantes de alguns segundos, está garantida a ambigüidade do mundo.

Para haver ambigüidade, é preciso haver apenas presente. A revisão ou memória do passado, assim como o planejamento do futuro, faz do presente um estágio apenas, aquele no qual se organiza o vivido ou se projeta aquilo a se viver. O presente bazaniano, no entanto, é o momento que se está vivendo. É o gerúndio, o movimento enquanto ele se dá, sem sentidos prévios, sem sentidos retroativos. Quando Louis Lumière diz a George Meliés que o cinematógrafo não tem futuro, porque só capta o movimento, não sabia estar conceitualizando, para além das perspectivas comerciais, o próprio princípio cinematográfico de captura de instantes. Não apliquemos nisso o conceito transformado em etiqueta de “fenomenologia” porque essa aplicação exigiria uma série de nuanças inviáveis de serem tratadas nesse artigo. Mas também não há como ignorar completamente algo já pensado antes, e melhor, por tantos outros.

O fim do impressionismo

Se o cinema como conceito bazaniano é praticado pela primeira vez nos filmes de Lumière, podemos localizar seus antecedentes mais imediatos, seguindo a linha de pensamento de Jean-Luc Godard e de Jacques Aumont, entre os impressionistas de modo geral e em Edouard Manet de forma específica. Os impressionistas tanto lidavam com ambigüidade da visão como também procuravam a captura de um instante. Nada de esboços. São pinturas de estudo, estudo primeiro daquilo que se vai olhar para pintar, de modo a, em meio às mudanças atmosféricas, reter uma luz ou o movimento das folhas, baseado em uma primeira impressão. Com uma câmera sem visor, os Lumière, sejam os próprios irmãos ou seus cinegrafistas, tinham de estudar o ambiente, o movimento do espaço, para enquadrar a olho nu. Precisavam antecipar o instante a ser filmado, abertos às contingências e imprevistos, porque o nível de planejamento é vulnerável. Isso salienta o caráter de testemunha de curta duração nessas imagens.

Para Godard e Aumont, após os Lumière, o impressionismo perde o sentido. Como representar uma folha balançando ao vento, se a folha realmente balança ao vento em um filminho como Lanche com o Bebê (1895), em que, se no primeiro plano vemos um casal com seu filho pequenino, ao fundo vemos a vegetação tremulando? Talvez estejamos pensando, sobretudo, no padrão de Claude Monet, ao menos em relação ao movimento. Mas podemos pensar ainda em Manet se a questão central for a centrifugacidade. Podemos tomar como maior exemplo O Balcão (1869 - ao lado), no qual, apesar da imobilidade posada do homem e das duas mulheres, há sempre um ponto de fuga para seus olhares. Um olhar que, para reter as informações, precisa se deslocar. O olhar interminável, segundo Aumont. Em O Balcão, olhamos para o centro e para as laterais, assim como para dentro da casa. O Balcão é bazaniano em seu âmago. O cinema é esse ponto de fuga, que exige um movimento ativo do olhar, e essa captura de um instante? Se adotarmos essa visão, há aqui um programa. Existem os filmes e existe o cinema. Filmes sem centrifugacidade e sem abertura para o presente como fim em si e não como passagem apenas, somente como um entre, seriam nesse programa filmes menos cinematográficos. Lumière é cineasta; Edison e Meliés, não – ou menos, pelo menos.

Fiquemos nesse momento com a questão de abertura para o presente. Ele pode estar em Lumière e em momentos de alguns filmes, como já refletiu amplamente Gilles Deleuze em Imagem Tempo. “Nós praticamente só percebemos o passado, o presente puro sendo o avanço invisível do passado consumindo o futuro”, afirma Henry Bergson em Matéria e Memória. Em Lumière, ao contrário, só há presente. O trem que vem (do passado), o trem que vai (para o futuro), embora nos remeta a um antes e a um depois, só existe enquanto está (a nossa frente, em quadro, no presente). Não seria por isso que, nos filmes de Lumière, todos estão passando? Os corpos quase nunca estão estáticos ou em movimento sem deslocamento, os objetos quase nunca deixam de atravessar as bordas, tudo está em seu tempo presente e em ação.

Instantes

Essa fugacidade já foi bastante estudada como coração do século 19, pulmão da modernidade, levando muitos críticos e filósofos a lidar com a noção de instante. Leo Charney afirma em Num Instante: o cinema e a filosofia da modernidade, parte de O Cinema e a Invenção da Vida Moderna, que o instante é experiência de uma sensação imediata, intensa, que esvaece logo após sentida pela primeira vez. Martin Heidegger associava instante à experiência da visão: “No instante da visão nada pode ocorrer”, escreveu em Ser e Tempo, salientando que, nesse instante, tudo nos escapa, não podemos reconhecê-lo, porque sua sensação é posterior. O instante como consciência não pode ser identificado no momento da ocorrência. Só existe presente quando ele é passado.

Se para um teórico como Noel Burch a ausência de outros planos, atraídos por planos anteriores e inseminadores de planos posteriores, ainda não é o cinema e sim um registro, para pesquisadores como Charles Musser e Jean Louis Commoli, entre outros, o cinema sempre esteve sendo inventado, desde os tempos das cavernas. Tanto a metáfora da Caverna de Platão como a lanterna mágica, nesse sentido, seriam apenas outros estágios da invenção porque a invenção é da imaginação, não da técnica, que é tão e somente a ferramenta viabilizadora de algo inventado antes por um desejo. Jean-Luc Godard, com sua disposição para as frases de efeitos retóricos, prefere afirmar, a partir de Lumière, que o cinema nunca teve um futuro, porque, afinal, ainda não tem um passado, somente um presente a ser constantemente inventado.

Se seguirmos essa linha de pensamento, o cinema dos Lumière, tal qual vimos na Jornada do Cinema Silencioso, já é o cinema, não sua fase primitiva, mas não é o primeiro cinema, como a historiografia e a teoria pós anos 70 costuma definir. É apenas um dos estágios. Independentemente, ou para além dessa circunscrição, talvez seja necessário, quase como um mantra, atacar a primeira exibição em dezembro de 1895, no Café Paris, como o momento de nascimento do cinema. Lembrou Godard a Michel Piccoli em 2 x 50 ans de Cinema Français, sua entrevista de comemoração pelo centenário do cinema, que a celebração estava equivocada. Piccoli era o presidente da Academia de Cinema Francês, responsável pelos eventos comemorativos. Em vez de falar, de forma publicitária, tomou uma aula. Godard afirma que, em vez de se comemorar a invenção do cinema, celebrava-se a primeira exibição. O comércio e não a linguagem, que, para Godard, não tem data de nascimento, porque nasce o tempo todo – antes de 1895 e depois de 1995, ano de 2 x 50... Uma arte a ser sempre inventada, mas que tem, entre seus inventores, um chamado Louis Lumière.

Setembro de 2009

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