história(s) do cinema brasileiro
Brevíssimo histórico
das relações cinema/TV no Brasil
por Pedro Butcher
Quando a TV surgiu no cenário audiovisual, nos
anos 50, o cinema sofreu um forte processo de desestabilização.
A TV não acabou com o cinema – assim como a fotografia não acabou
com a pintura e o cinema não acabou com a fotografia – mas, a
partir do surgimento de seus “sucessores”, cada um desses meios
precisou se readaptar a uma nova configuração, a um novo território
de ação.
Para Marshall McLuhan, os meios de expressão não
disputam entre si apenas mercados consumidores, mas competem também
“biologicamente”, defendendo territórios e nichos. Quando surgem
(em geral amparados pelo poder econômico), buscam aglutinar o
outro meio tornando-o apêndice de sua rede de operações. Esse
aspecto se evidencia nas modificações que o cinema sofreu depois
do surgimento da televisão, tanto do ponto de vista de sua viabilidade
financeira como de sua sobrevivência estética.
Dois países podem ser considerados paradigmáticos
nesse aspecto: nos Estados Unidos, o cinema inicialmente entrou
em conflito com a TV, mas aos poucos a legislação e as forças
econômicas em jogo redesenharam a cadeia audiovisual de forma
que TV e cinema passaram a fazer parte de um mesmo complexo, sem
que perdessem certo grau de autonomia; na França, onde a TV foi
majoritariamente pública até os anos 80, a forte intermediação
do Estado levou os canais a se tornarem os principais meios financiadores
do cinema, fato que se intensificou, principalmente, com o surgimento
da TV paga (mais especificamente o Canal Plus).
O Brasil não seguiu nenhum desses caminhos. A
implantação da TV, que chegou ao país rapidamente, pelas mãos
do empresário Assis Chateaubriand, não provocou reação imediata
do setor da produção cinematográfica e, como esse não tinha formado
um sistema industrial perene, nem montado uma infra-estrutura
sólida, o empresário também não recorreu ao cinema como modelo
ou parceiro para fixar suas estruturas.
Em 1948 – dois anos antes, portanto, de inaugurar
a TV Tupi – Chateaubriand tentou investir na produção cinematográfica,
mas apenas dois filmes saíram de seus Estúdios Cinematográficos
Tupi: Chuva de estrelas, de 1948, e Quase no céu,
de 1949, ambos dirigidos por Oduvaldo Viana. O cinema foi um movimento
lógico da expansão de investimentos do magnata da comunicação
e os filmes foram concebidos como veículos para explorar a popularidade
dos astros das rádios Difusora e Tupi que pertenciam ao empresário.
Quase no céu, em particular, ganhou ampla divulgação nos
jornais e revistas da Diários Associados.
Mas, como explica Arthur Autran, em sua tese de
doutorado O pensamento industrial cinematográfico brasileiro,
os poucos registros que existem a respeito da iniciativa não dão
conta, exatamente, das razões que levaram Chateaubriand a desistir
rapidamente do cinema, apesar do sucesso desses dois filmes. Uma
hipótese provável, segundo o autor, estaria nos obstáculos impostos
pelos exibidores, tendo em vista que, em 1949, o empresário passaria
a veicular em suas publicações uma intensa campanha, de caráter
visivelmente revanchista, contra as maiores companhias de exibição
do Brasil (Severiano Ribeiro e o circuito Serrador).
A implantação da televisão no Brasil e o crescimento
mundial do novo meio parecem “ter passado despercebido a todo
mundo”, como apontam Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet
no ensaio “Cinema: repercussões em uma caixa de eco ideológica”,
do livro O nacional e o popular na cultura brasileira.
A única exceção teria sido o produtor, diretor e crítico Fernando
de Barros, que defendeu com veemência, em sua coluna na revista
Fundamentos, uma aliança entre cinema e TV: trata-se, segundo
ele, de uma ‘radical transformação, a primeira em toda a história
do cinema, provocada pelo fato de que a TV manda imagens gratuitas
para dentro das casas’ (8/6/1954). Fernando de Barros é contra
que se faça guerra à TV: ‘É o que se fez nos Estados Unidos e
não deu certo para o cinema. Os homens de cinema devem se unir
à TV e já, porque, por enquanto, os homens de TV ainda não estão
fortes. Há um dirigente de TV que aceitaria fazer um convênio
com um grande estúdio, para ele seria preferível, pois não teria
de empatar dinheiro em máquinas. Mas os homens de cinema não querem
saber de nada, parece que eles têm o rei na barriga’ (26/11/1952)”.
Já em 1960, o ex-publicitário e homem de rádio
Walter Clark – que, em sua autobiografia O campeão de audiência,
se define como um “louco por cinema e rádio-ouvinte aplicado”
–, tentou desenvolver uma carreira paralela como produtor de longas-metragens,
enquanto estava na direção da TV Rio. Mas o esforço na época limitou-se
a um projeto que não chegou a se concretizar. Clark conta ainda
que sua paixão pelo cinema o levou a ajudar, via TV Rio, vários
cineastas, e que a experiência frustrada serviu para lançar seu
nome como produtor cinematográfico – função que ele retomaria
mais tarde, nos anos 80, depois de ter permanecido mais de 11
anos como um dos principais executivos da TV Globo.
Mas o movimento mais importante de Walter Clark
no sentido de envolver a televisão na produção cinematográfica
se deu em 1972, quando a TV Globo, já constituída como rede nacional
e detentora de 70% da audiência, resolveu diversificar seus negócios.
O primeiro passo foi em direção à música, pois com o sucesso das
telenovelas surgiu uma grande demanda pelas trilhas sonoras. Num
primeiro momento, as trilhas eram produzidas pela gravadora Philips
(mais tarde Polygram, depois comprada pela Universal), dirigida
por André Midani. A gravadora produzia os discos, usando o nome
da novela da Globo, que recebia cinco por cento da receita. Segundo
Clark, “evidentemente, com o tempo, percebemos que era muito mais
negócio para a Globo ter seu próprio selo. Foi aí que surgiu a
idéia da Sigla e da Som Livre, uma editora e uma gravadora musical”.
O segundo passo foi em direção ao cinema. Em 1972,
a Cantagalo (empresa formada por Clark e outros profissionais
para se associar com a Globo na Som Livre) e a Globo se associaram
em uma nova empresa, com a participação de mais dois empresários
(Aloísio Ferreira de Salles e Horácio de Carvalho). Com o nome
de Indústria Cinematográfica Brasileira (ICB), a parceria apresentava
um modelo de negócios diferente do modelo da Som Livre. Na ICB,
Roberto Marinho não entrou com dinheiro nem tinha a palavra final.
“Ele apenas entrava com a divulgação dos filmes na Globo e tinha
sua participação através disso”, explica Walter Clark. O produtor
Luiz Carlos Barreto foi contratado para tocar o negócio, mas sem
participação na sociedade.
A ICB tinha como objetivo entrar com força na
produção e, eventualmente, na distribuição. Segundo Clark, a empresa
chegou a realizar cinco longas-metragens – A estrela sobe,
de Bruno Barreto (1974), Guerra conjugal, de Joaquim Pedro
de Andrade (1975), O flagrante, de Reginaldo Farias (1975),
Isto é Pelé, de Luiz Carlos Barreto (1975), e O crime
do Zé Bigorna, de Anselmo Duarte (1977) – e lançou pelo menos
três – O casal, de Daniel Filho (1975), Marília e Marina,
de Luiz Fernando Goulart (1976), e Os Doces Bárbaros, de
Jom Tob Azulay (1977). Em 1974, chegou a expandir sua atuação
por intermédio de um acordo com a Gaumont, para distribuir filmes
franceses no Brasil.
No entanto, em 1974, no momento em que Walter
Clark negociava com Luiz Carlos Barreto a participação da ICB
na produção de Dona Flor e seus dois maridos (que viria
a se tornar um dos maiores sucessos de público da história do
cinema brasileiro, com mais de 10 milhões de espectadores, e que
teria como estrela Sônia Braga, que acabara de protagonizar a
novela Gabriela), Roberto Marinho resolveu, nas palavras
de Clark, retirar a participação da Globo: “Um belo dia, num domingo
(...) fui chamado para uma reunião às pressas com Luiz Eugênio
Miller, advogado de Roberto. Estranhei a urgência, mas quando
cheguei, até me surpreendi”. Miller trouxe o recado de que Roberto
Marinho não queria fechar negócio com Barreto.
Clark completa: “Argumentei que era tolice, e
que iríamos perder dinheiro se não entrássemos. Mas ele foi inflexível.
(...) Eu não entendi na hora e não posso afirmar com certeza,
mas acho que o Roberto tomou a decisão para não desagradar seus
amigos Severiano Ribeiro (maior exibidor do Brasil) e Harry Stone
(representante da Motion Pictures Association, associação que
representa os interesses dos grandes estúdios de Hollywood fora
dos Estados Unidos), que dominavam o mercado cinematográfico brasileiro
e, evidentemente, não gostariam de um concorrente do porte da
Globo invadindo sua praia. Os dois eram amigos íntimos de Roberto
e mandavam a ele, toda semana, uma cópia novinha de algum filme
que estivesse para estrear. Roberto tinha uma sala de projeção
em casa e as sessões especiais de cinema eram um dos programas
que ele oferecia com o maior prazer a seus convidados. (...) Pode
até não ser esse o motivo da desistência, mas sem dúvida é muito
curioso que um homem com a ambição de Roberto Marinho (...) tenha
desistido do cinema”. O recuo de Marinho, segundo Walter Clark,
“esfriou” o ICB, que continuou fazendo algumas produções, mas
agora “sem a ambição de construir no Brasil uma indústria cinematográfica
tão poderosa quanto a da televisão”.
Dois aspectos precisam ser ressaltados nessas
iniciativas. O primeiro é a ausência do Estado como figura de
mediação entre o cinema e a TV. Apesar de a Embrafilme e a TV
Globo terem se beneficiado do mesmo projeto nacionalista empreendido
pelo governo militar, jamais houve uma articulação entre os dois
meios por parte do Estado.
O segundo é que as iniciativas descritas por Walter
Clark no sentido de relacionar cinema e TV guardam semelhanças
importantes a uma das principais formas de atuação da Globo Filmes.
Anos mais tarde, em 1998, quando a TV Globo resolveu criar um
departamento voltado para produção de longas-metragens para cinema,
adotou o mesmo princípio de ação na grande maioria dos projetos
em que se envolveu, oferecendo espaço em mídia e evitando o financiamento
direto dos filmes – algo que Clark afirma ter posto em prática
na base da amizade, quando ainda estava na TV Rio, e que também
seria o fundamento lógico da constituição da ICB na produção de
cinema.
Obs: este texto é a adaptação resumida
de um capítulo da dissertação de mestrado
Ä Dona da História - Origens da Globo Filmes e seu
impacto no audiovisual brasileiro". O texto completo está
a disposição no site
da Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
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