in loco
Cinefilia(s)
por Marcus Mello

Realizado em Montevidéu entre os dias 1º e 16 de abril, o XXIV Festival Cinematográfico Internacional do Uruguai é um acontecimento que se presta a uma série de reflexões interessantes. Trata-se de um evento de orçamento modesto (apenas 15 mil dólares este ano), com uma programação bastante defasada se formos compará-lo à Mostra Internacional de São Paulo ou ao Festival do Rio (na competição internacional havia títulos como Manderlay, Flores Partidas, Old Boy, Shara e Tropical Malady). A projeção em algumas salas deixa a desejar. O sistema de legendagem eletrônica é precário. Quase não há diretores convidados. Ainda assim, acompanhar o festival constitui-se numa experiência única, por possibilitar o contato direto com um dos públicos cinéfilos mais sofisticados, críticos e exigentes da América Latina.

Antes de tudo, é importante sublinhar que a relação dos cinéfilos gaúchos (categoria na qual se inclui este que vos escreve) com a cidade de Montevidéu sempre foi muito estreita. Obviamente facilitada por razões geográficas, esta ligação teve início com a admiração pelo trabalho da crítica uruguaia, cuja atuação durante os anos 1950 e 1970 lhe assegurou prestígio internacional. Depois, durante a ditadura militar no Brasil, começaram as caravanas para assistir aos filmes proibidos pela censura nas grandes salas da Avenida 18 de Julho, onde se exibiam quase simultaneamente à Europa obras como O Último Tango em Paris, Laranja Mecânica, A Comilança ou Saló. Havia ainda a programação da Cinemateca Uruguaia, criada em 1954, uma das mais respeitadas instituições do gênero em todo o mundo. Tais condições valeram a Montevidéu uma aura de lugar mítico, espécie de paraíso criado para a fruição plena da cinefilia. Embora hoje em dia pouco reste do esplendor econômico que propiciou o florescimento dessa cultura cinematográfica singular e fez com que o Uruguai se tornasse conhecido como a “Suíça latino-americana”, o encanto permanece.

Não estamos mais nos tempos do lendário crítico Homero Alsina Thevenet, o “homem que descobriu Bergman”, morto no final de 2005, mas sua presença continua a inspirar as novas gerações de espectadores que formam filas gigantescas para assistir aos filmes programados pelo festival. Os feitos de Thevenet, aliás, eram tema de animada conversação numa dessas longas filas que dobravam quarteirão (para garantir lugar em uma sessão de O Mundo, de Jia Zhang-ke). Para quem não a conhece, a história da descoberta de Bergman por Thevenet merece ser relembrada, pois é graças a ela que a fama da crítica uruguaia cruzou fronteiras. Co-diretor da revista Film, Thevenet estava cobrindo o segundo Festival de Cinema de Punta del Este, em 1952, quando assistiu a um filme de um jovem e obscuro diretor sueco de quem ninguém jamais ouvira falar. O filme chamava-se Juventude, Divino Tesouro (1951) e seu autor, com apenas 33 anos de idade, teve seu gênio imediatamente percebido por Thevenet, que em julho de 1953 lhe dedicaria um longo texto nas páginas de Film, considerado o primeiro artigo elogioso à obra de Bergman publicado fora da Suécia.

O entusiasmo de Thevenet (que sempre fez questão de dividir sua descoberta com os outros 10 críticos uruguaios presentes ao Festival de Punta del Este naquele ano) foi tamanho que, em pouco tempo, e graças ao auxílio da Embaixada da Suécia, alguns filmes de Bergman passaram a estrear em Montevidéu antes mesmo de serem exibidos em Estocolmo. Quando da comemoração dos 80 anos de Bergman, o próprio governo sueco reconheceria o pioneirismo de Thevenet, afinal, a obra do diretor de O Sétimo Selo só começou a correr mundo após a premiação de Sorrisos de uma Noite de Verão no Festival de Cannes de 1956. Thevenet, é preciso frisar, teve outros colegas de reputação igualmente notória, entre eles Jaime Francisco Botet, Manuel Martínez Carril (hoje diretor da Cinemateca Uruguaia) ou Guillermo Zapiola, atuantes em publicações que fizeram história, como a já citada Film, o semanário Marcha, a revista Nuevo Film ou o Segundo Caderno do jornal El País.

Assim sendo, o exercício de nossa própria cinefilia em campo tão fértil quanto o entorno das salas de exibição montevideanas nos exige alguma bala na agulha e o sempre salutar e civilizado exercício da tolerância. Como críticos de cinema são sujeitos com um certo desvio de caráter (afinal, não é todo mundo que tem sua opinião em tão alta conta, a ponto de fazer questão de publicá-la) e freqüentemente pouco tolerantes, a maratona para acompanhar a programação do XXIV Festival Cinematográfico Internacional do Uruguai em determinadas ocasiões era abalada por rasgos de súbita perplexidade ou mesmo indignação. De que maneira explicar, por exemplo, a indiferença do público diante de Tropical Malady, Shara ou Tarnation, inversamente proporcional à calorosa recepção a filmes como As Chaves da Casa, Flores Partidas (grande vencedor do festival) ou O Vale dos Lamentos? Por que títulos elogiadíssimos no Brasil não recebiam o mesmo tratamento por parte dos cultivados cinéfilos uruguaios? Qual a razão de avaliar sempre o trabalho de novos diretores a partir de comparações com a obra de Buñuel, Dreyer, Fellini, Ford ou Glauber, em discussões inflamadas, abastecidas com generosas doses de erudição, e ainda mais surpreendentes porque sustentadas por jovens mal saídos da adolescência ou elegantes velhinhas quase centenárias? Uma resposta talvez surja nas páginas dos boletins mensais da Cinemateca Uruguaia, que graças ao seu gigantesco acervo consegue manter uma programação – espalhada por seis salas – que poucas cidades do mundo são capazes de oferecer. Apenas nos últimos meses, os cerca de 10 mil associados da instituição tiveram acesso a ciclos dedicados a diretores tão distintos quanto Miklós Jancsó, Alejandro Jodorowsky, Luchino Visconti, Jan Svankmajer, David Lynch, Werner Herzog e Roberto Rossellini, sem mencionar as inúmeras estréias (a Cinemateca também atua como distribuidora) ou as cultuadas Trasnoches, realizadas sábados à meia-noite, onde se exibem filmes como Irmãs Diabólicas, Eu Caminhei com um Zumbi, Liquid Sky, O Fundo do Coração, Freaks e Häxan, a Feitiçaria Através dos Tempos, que adoraríamos poder ver no cinema da esquina. Na sua maior parte, em cópias pertencentes à própria instituição, cujos arquivos guardam perto de 20 mil títulos catalogados.

Sem dúvida, essa possibilidade de imersão cinematográfica autoriza os cinéfilos uruguaios a manter padrões bem elevados de exigência. Buñuel, Bergman ou Ford são presenças vivas, nomes regularmente em cartaz, não relegados às empoeiradas prateleiras de clássicos das (boas) locadoras. No entanto, basta passar por um banca de jornal e comprar um exemplar da revista argentina El Amante, editada quase ao lado, em Buenos Aires, para perceber que os críticos portenhos também cultivam suas próprias idiossincrasias, com insuspeitos eleitos que jogam aos céus (Curtis Hanson, Robert Rodriguez, Lawrence Kasdan, Allison Anders) e outros que condenam ao inferno (Lars Von Trier, Eliseo Subiela, Todd Solondz ou, pasmem, Pedro Almodóvar, cujo Tudo Sobre Minha Mãe foi incluído na lista “Las Películas que Odiamos”, publicada na edição de dezembro de 2005). Fundada em 1991, El Amante é hoje uma das mais importantes publicações de cinema da América Latina. Entre seus fundadores, estavam os críticos Quintín e Flavia de la Fuente, atualmente desligados da revista e responsáveis pela versão em espanhol da Cahiers du Cinéma. Mas sua redação segue contando com colaboradores do porte de Leonardo M. D’Espósito, Gustavo Noriega e Javier Porta Fouz, que também surpreendem por suas escolhas inusitadas, defendidas com brilhantismo em textos marcados por um sarcasmo tipicamente argentino e sedutora argumentação.

Voltamos ao cinema, novas filas a enfrentar, e a pergunta permanece no ar: por que determinados filmes e diretores recebem tratamentos tão diferentes em países assim próximos? O que faz com que um grupo de críticos argentinos despreze um filme como Tudo Sobre Minha Mãe ou que os uruguaios não se entusiasmem com Apichatpong Weerasethakul? Menos do que buscar, em vão, algumas explicações para essas divergências de opinião entre cinéfilos de tamanha envergadura (contexto cultural, formação cinematográfica, sistema de exibição e distribuição e até particularidades geográficas), parece mais interessante anotá-las e percebe-las como partes distintas de uma mesma família. Afinal, talvez devamos nos ver todos apenas como “filhos do cinema” (“cinefils”, para usar a bela expressão cunhada pelo crítico francês Serge Daney), irmanados pela comum e irrefreável paixão despertada por esta arte ainda tão jovem, mas que já nos há dado tanto.


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