in loco - cine ceará 2010
Quarto dia: Imagens que ficam
por Fábio Andrade

Pulamos do segundo para o quarto dia nesta cobertura do Cine Ceará por um motivo simples: o terceiro dia foi dedicado à primeira sessão de curtas da competição oficial e, pelo desenho esboçado pelas duas primeiras sessões de curtas vistas até agora, parece mais proveitoso reservar à competição um texto único, ao final da cobertura. Isso se dá não por os curtas não merecerem textos individuais (como nós fizemos, há não muito tempo, em uma pauta especial dedicada à produção brasileira recente), mas sim porque os filmes exibidos até agora giram, quase todos e de maneira obsessiva, em torno de um mesmo pathos – de maneira que o grupo reunido por esta curadoria se torna uma boa fonte para pensarmos suas origens e implicações. A eles, portanto, retornaremos mais tarde, reunindo os sintomas e alguns poucos antídotos.


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Memória Cubana (Memoria Cubana), de Alice de Andrade e Iván Napoles (Brasil/Cuba/França, 2010)

No quarto dia, o Cine Ceará reuniu dois longas cubanos em uma mesma sessão. Isso porque, embora Memória Cubana seja dirigido pela brasileira Alice de Andrade, em parceria com o veterano diretor e fotógrafo cubano Iván Napoles, o filme não só nasce dentro do ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos) como lida diretamente com um material de grande valor histórico para o país: os noticieros – cinejornais realizados pela equipe coordenada por Santiago Álvarez, durante e após a revolução cubana. Alice e Iván recuperam este material com a intenção de contar não exatamente a história deste país, ou sequer a do grupo, mas sim a do encontro entre essas duas partes, registrado naqueles pequenos rolos de filme.

A abordagem desse rico material guarda poucas surpresas: Alice procura os sobreviventes do grupo (que incluía o fotógrafo e, posteriormente, co-diretor do filme, Iván Napoles), e monta entrevistas atuais junto a trechos dos cinejornais originais. Há, naturalmente, um valor gigantesco na simples recuperação e exibição dessas imagens, muitas delas extraordinárias não só como registro da História, mas também como cinema. Mas o que mais interessa em Memória Cubana é a maneira como Alice de Andrade realiza, muito discretamente, operações cinematográficas contundentes na estrutura do filme, que alteram – de maneira suave, mas decisiva – a relação do espectador com o filme. Em primeiro lugar, há um aspecto metalinguístico: Ivan Nápoles é o câmera do material produzido para Memórias Cubanas, mas também de diversos daqueles noticieros. Com isso, temos um choque constante de dois momentos históricos, onde todas as diferenças de textura (da película para o vídeo), visuais (do preto e branco para as cores), convencionais (as diferentes naturezas dos enquadramentos; a mudança do registro imediato em câmera no ombro para as entrevistas planejadas em tripé) e materiais (a diferença do mundo daquela época, para o mundo de agora) são colocadas em contato.

É mais interessante, porém, que Alice de Andrade e Iván Napoles nunca tragam o questionamento da natureza das operações para o primeiro plano do filme. A metalinguagem está ali, evidente; não é necessário fazer dela um tópico para que ela seja uma questão essencial. Essa atitude não só vai de encontro às estratégias de ponta do documentário brasileiro recente, como evidencia uma postura diante daquele material que se põe em plena sintonia com a posição realizadora das equipes dos noticieros: colocar-se a serviço de algo. Assim como o grupo do ICAIC trabalhava como uma ferramenta da revolução, Memória Cubana abaixa o tom do presente em nome da revitalização de um passado. O interesse do filme está nos noticieros, e são eles que motivarão os procedimentos de direção, fotografia e montagem. É preciso que o filme sirva à História.

Não deixa de ser sintomático de nossos tempos que um filme onde tudo está tão evidente corra o risco de passar como uma obra retraída, de intenções tímidas. Ao contrário, o material dos cinejornais é tão suficiente que uma instabilidade de registro pode ser percebida a partir do próprio material – em vez de, como anda em moda, da conversa sobre o material. Dois exemplos: quando Iván Napoles conta da chegada do grupo ao Vietnã, é perceptível que os planos dos cinejornais são feitos de dentro de um jipe do exército. Essa simples constatação já é suficiente para o espectador problematizar a instância enunciadora dos noticieros, e de como ela influenciará a construção daquelas imagens. Essa discrição, porém, é mais por uma lucidez realizadora do que por um acovardamento diante da história. Em um dos melhores momentos do filme, um técnico de som do ICAIC conta sobre a chegada da equipe de filmagens no Cambodja, uma semana após a abertura do país. Eles filmam as ruas absolutamente vazias e, na hora de revisar o material, percebem que o único ruído da filmagem vinha do próprio gravador de som. Se falamos, portanto, de operações e procedimentos, é porque a discrição e a humildade diante do material recuperado são conquistados por meio delas, e elas têm um influência decisiva na compreensão dessa história. Memória Cubana talvez nunca pegue o espectador pelas tripas, mas nos segura firme e decididamente pelos olhos.

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Lisanka (idem), de Daniel Diaz Torres (Cuba/Venezuela/Rússia, 2009)

Não ajuda muito que Lisanka, de Daniel Diaz Torres, tenha sido exibido logo depois de Memória Cubana. Pois a pregnância que sobra nas imagens dos noticieros é exatamente o que falta neste outro filme cubano. Em seus primeiros minutos, uma gag anacronicamente explícita conquista alguma simpatia: um casal faz sexo em um galinheiro, e a montagem alterna planos dos corpos com o vai-e-vem das badaladas do sino da igreja local (mais tarde, uma cena parecida será montada com a chegada de um míssil atômico soviético na cidade, devidamente erguido ao final). Mas o que parecia anunciar uma versão cara-de-pau das comédias de Guel Arraes aos poucos se revela um longo equívoco de tom, ritmo e escritura, marcado pela incapacidade absoluta de se cortar de um plano para seu contraplano sem quebrar a continuidade fotográfica.

Junho de 2010

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