in loco - cine ceará 2010
Segundo dia: O triunfo
do desconhecido
por Fábio Andrade
Alamar
(idem), de Pedro González-Rubio (México, 2009)
Há uma facilidade que induz que Alamar
seja jogado em um saco de gatos sem fundo, onde parecem caber
todos os filmes recentes que tracionam, em alguma medida, as fronteiras
entre o documentário e a ficção no cinema. Esse gesto fica perigoso
quando se torna conectivo entre obras que têm preocupações centrais
radicalmente diferentes, e que acabam unidas de maneira totalizante,
ou até totalitária, por um recurso, uma ferramenta de dramaturgia.
Pois excetuando uma ou outra menção em cena da presença da câmera,
não há indícios suficientes em Alamar que coloquem essa
instabilidade de registro em primeiro plano. Muito como um Morro
do Céu, de Gustavo Spolidoro, ou mais ainda como os filmes
de Robert Flaherty, o documental serve como um estágio anterior
que possibilitará a entrada em um espaço, que por sua vez permite
a construção de um universo. Essa abordagem não é, portanto, parte
integrante da obra, embora sua pré-existência seja essencial para
o resultado. O documentário é apenas a chave do ateliê.
Alamar
parte de uma premissa extremamente simples: filho de um mexicano
com uma italiana, o garoto Natan (Natan Machado Palombini) deixa
Roma para passar uma última temporada com o pai (Jorge Machado)
em uma palafita no mar, perto ao Banco Chinchorro – um atol no
mar caribenho. “Partir” não é um verbo ideal, pois Alamar
realmente não ambiciona ir narrativamente a nenhum outro lugar.
Tanto que esse fiapo de narrativa é resolvido quase à parte do
filme, em uma sequência inicial de fotografias que ilustram o
texto em voz over. Uma vez lá, junto somente do pai, do
pescador que ali mora (Nestór Marin) e dos animais que transitam
pela redondeza, Natan aprenderá sobre a vida pela ótica do pai,
e é exatamente isso que acompanharemos ao longo de toda a projeção.
Alamar
é menos um filme de tensão de registros – como Iracema,
de Jorge Bondanzky e Orlando Senna – do que um filme de instalação
do espectador em um determinado espaço, com um grupo restrito
de personagens. Essa instalação, porém, só é bem sucedida pelo
notável talento com o qual Pedro González-Rubio – que é roteirista,
diretor, produtor, fotógrafo e montador do filme – faz, desse
espaço físico de natural deslumbre, um espaço cinematográfico
ainda mais instigante. González-Rubio tem uma capacidade notável
de fugir de todos os clichês de ritmo e plasticidade que infestam
inúmeros filmes sobre o mar, com os travellings lentos
e a muleta permanente dos planos contemplativos. Seja pelo posicionamento
da câmera ou pelo trabalho de montagem, o diretor transforma um
espaço naturalmente exuberante em um cenário de ficção científica
minimalista, onde crocodilos habitam os mares e o desaparecimento
de uma ave pode se tornar uma reviravolta dramática. A predominância
dos planos fixos em plongée subverte a placidez das marés
com uma tensão constante, num misto de fascínio e insegurança
rigorosamente condizente ao olhar do protagonista.
Com
isso, o diretor consegue um feito notável: produzir imagens que
nos dão uma sensação rara de ineditismo. Muito como Tulpan,
de Sergei Dvortsevoy, Alamar apela a esse interesse muito
visceral de quem vê o mundo, ou partes específicas dele, pela
primeira vez. Ao contrário do que fazem acreditar as cartelas
contextualizantes e oficialescas que fecham o filme, ressaltando
a importância de preservação do Banco Chinchorro como patrimônio
da humanidade, a verdadeira função da locação é servir ao diretor
como esse oásis do olhar, esse objeto que desperta o fascínio
no artista e o move à realização de algo realmente singular. Alamar
consegue isso por diversas vezes, seja quando mostra o desconhecido,
seja quando filma o que já nos parece trivial. E isso, mais do
que a correção ecológica ou as ambições de propagar uma conscientização
do óbvio, é um feito sem dúvidas admirável.
Junho de 2010
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