in loco - cine ceará 2010
Primeiro dia: Crise
de consciência
por Fábio Andrade
Do Amor e Outros
Demônios (Del Amor y Otros
Demonios),
de Hilda Hidalgo (Costa Rica/Colômbia, 2009)
Firmando o recorte ibero-americano para a competição
de filmes de longa metragem, o Cine Ceará abriu sua vigésima edição
com esta adaptação do texto de Gabriel Garcia Marquez. A referência
de Garcia Marquez abre, em um primeiro momento, um caminho de
adaptação evidente e marcante na obra do escritor colombiano:
construir um universo em bases de extremo realismo, mas que serão
questionadas por um contato inevitável e constante com o fantástico.
As duas forças – o real e o fantástico – de fato estão presentes
no filme de Hilda Hidalgo, mas há uma prevalência muito clara
de uma sobre a outra. Enquanto os melhores momentos da prosa de
Garcia Marquez surpreendem justamente pelos dois registros se
amalgamarem com uma impressão de inabalável continuidade (lembremos,
aqui, do sangue que sobe a calçada para avisar a mãe que seu filho
havia morrido, em Cem Anos de Solidão),
Hilda Hidalgo usa o fantástico apenas como uma breve fuga da dureza
cotidiana. Apartado da realidade, o fantástico deixa de ser fantástico;
resta apenas o onírico.
Esse distanciamento produzido é importante, pois
é a partir dele que os problemas mais graves de Do Amor e Outros
Demônios ganham corpo. Por um lado, a diretora demonstra inquestionável
habilidade encontrando imagens expressivas para os momentos de
sonho: a vela que permanece acesa debaixo d’água e o preciso jogo
de claro e escuro que recorta a presença fantasmagórica de Sierva
(Eliza Triana) sobre os ombros do Padre Cayetano (Pablo Derqui),
em seu desejo febril, erguem-se como lembranças fortes que traduzem
com perfeição idéias e sentimentos específicos. Mas, por outro,
Hilda Hidalgo usará do repertório mais respeitável, e
hoje já ineficaz, do estabelecimento realista de uma vivência
latino-americana no cinema: Lucrecia Martel. Estão lá as mesmas
paredes sujas, a relação de sexualidade ambígua entre Sierva e
a criada, a mãe que não sai da cama, aquela gente suada, trágica
e orgulhosa de seus cabelos cacheados, soltando pelos poros a
sexualidade reprimida em cada canto do estômago. Reconhecendo
que a força de O Pântano se dilui dramaticamente em revisões,
muito do impacto que permanece no filme se dá na tensão que Lucrecia
Martel provoca nos registros assumidos – tensão esta que está
no cerne de A Mulher Sem Cabeça, mas que era esboçada no
primeiro longa da diretora sobretudo no hipnótico arrastar de
cadeiras em volta da piscina que abre o filme. Essa tensão, que
serviria tão bem à incorporação do fantástico no realismo feita
por Garcia Marques, não inexiste de todo em Do Amor e Outros Demônios, mas é desperdiçada
em momentos de encenação frouxa, em demasiada segurança.
A possibilidade mais expressiva de manifestação
do fantástico acontece quando um eclipse escurece a cidade – mas
é revelador dos problemas de Do Amor e Outros Demônios
que esta cena reproduza o exato enquadramento do eclipse de Síndromes
e um Século, de Apichatpong Weerasethakul. Revelador, pois
a força extraordinária que o signo adquire em Síndromes e um
Século se deve a uma relação que a cena estabelece com o todo
(um filme especialmente interessado na sobreposição de camadas
de sombra, onde o encontro do sol com a lua resume a dupla face
que Apichatpong emprega a cada pequeno detalhe – seja ele um dentista
que também é cantor, uma perna que esconde uma garrafa de whisky
ou um desdobramento da medicina de ponta como um trabalho místico),
e com os desdobramentos simbólicos do tempo que o diretor deixa
correr em sua duração. Hilda Hidalgo recupera este signo fragmentado,
como se ele carregasse sozinho seu próprio significado. As duas
camadas que deveriam se sobrepor – a saber, o realismo e o fantástico
– não correm em contato; há apenas momentos diferentes onde vemos
mais do sol, e outros onde vemos mais da lua.
Grande parte dos problemas de Do Amor e Outros
Demônios vem justamente da incompreensão de que há vozes em
movimento por trás da casca dos signos, e que esses significados
muitas vezes jogarão contra a incorporação simplória da aparência
promovida pela diretora. Há, por exemplo, um desdém racionalista
à crença da Igreja no filme de que a mordida de um cão raivoso
injetaria uma força demoníaca no corpo da pessoa atacada; mas
Hilda Hidalgo usará a mesma mordida como metáfora da chegada avassaladora
da sexualidade, ignorando que esse procedimento, supostamente
crítico, é rigorosamente o mesmo do objeto criticado. Em sua porção
realista, Do Amor e Outros Demônios se arrasta no peso
das metáforas ineficazes, onde a manifestação das forças ocultas
na realidade virá sempre com um plano de cortinas brancas balançando
ao vento. O filme é condenado à contradição absurda de uma autenticidade
previsível, onde tudo que deveria ajudar a construir um mundo
“real” termina por denunciar um mundo construído.
Mas
o que parece realmente preocupante, em especial no contexto de
um festival que busca uma integração do Brasil ao resto da América
Latina, é a dedicação de Do Amor e Outros Demônios em desempenhar
exemplarmente seu papel de filme latino-americano para festivais
internacionais. Por trás da eficiência de Hilda Hidalgo em trazer
este imaginário “típico” para dentro do filme (do qual Lucrecia
Martel e Gabriel Garcia Marquez são guardiões dos mais reputados),
sobrevive a obediência acuada de uma artista que conhece perfeitamente
sua condição, e a desempenha com um voluntarismo dócil e romantizado.
Pois conhecer sua condição é também respeitar certos limites que,
na doutrina dos festivais e do cinema de autor, constróem uma
nova forma de colonialismo. Em certos casos, são os jogadores
que se negam a cumprir as regras (ou melhor, que sequer sabem
que estão jogando) que têm a possibilidade real de mudar sua condição.
Ter consciência é também concordar, respeitar, obedecer. Diante
de Do Amor e Outros Demônios, fica a certeza de que, para
o cinema latino-americano encontrar para si algum caminho de fato,
é preciso que os filmes sejam mais ignorantes.
Junho de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|