olho no olho Históricos
diálogos em BH perguntas por Eduardo Valente,
Ilana Feldman e Leonardo Mecchi Uma entrevista
com um dos editores da própria revista? Sim e não. Sim, porqu eé
óbvio que Cléber Eduardo continua sendo um editor da Cinética
em qualquer atividade que exerça. Mas não, porque realmente o Cléber
que nos interessa aqui é o curador da primeira edição do
CineBH, mostra
que aconteceu em Belo Horizonte entre os dias 31 de outubro e 6 de novembro últimos.
E nos interessa em especial porque, exceção feita a passagens-relâmpago
de um dia de Leonardo Mecchi (mediando um debate), Cezar Migliorin (apresentando
um vídeo) e eu mesmo (apresentando um filme), somente Ilana pôde
acompanhar mais de perto esta que foi uma mostra cheia de nuances bem interessantes
de programação e de realização (sendo toda sua estrutura
montada numa praça do bairro belorizontino de Santa Tereza, com programação
totalmente gratuita entre exibições ao ar livre, numa tenda montada
para o evento e num antigo cinema especialmente reaberto também para a
mostra). Abaixo, então, aproveitamos para tirar todas as nossas dúvidas
com o curador da Mostra - que, por acaso, também é nosso editor.
(Eduardo Valente)Cinética: O conceito do CineBH
girou em torno das "tradições e contradições" do cinema popular brasileiro,
porém sabemos que o problema do cinema popular no Brasil não é somente relativo
à dificuldade de uma definição conceitual razoável, sendo, antes de tudo, um problema
de ordem prática e econômica. De que forma a Mostra, por meio da curadoria e da
realização, pensam, praticamente, essa questão? Cléber
Eduardo: Na prática, o problema é de acesso, financeiro. Uma forma de transformar
pensamento em prática, quebrar o filtro elitista e abrir o acesso a quem esteja
interessado em cinema, não a quem apenas se interesse e possa arcar com os custos
do interesse. Não adianta falar somente em abstrações, solicitarmos espaços em
circuito ou mais salas, sem tocar na questão do preço do ingresso. Se o sujeito
não pode pagar pelo ritual comunitário do cinema, vai comprar dvd pirata, baixar
filme do emule ou fazer um gatonet. Crise de cinefilia é questão financeira também.
Cinética: Além da programação, dos seminários e das
oficinas proporcionadas pela Mostra, as sessões "Diálogos históricos"
foram fundamentais não apenas enquanto proposta de historização dos filmes (em
seus universos temáticos e estéticos) como proposta de pôr em relação e em tensão
o próprio cinema. Isto é, levar o embate, em suas aproximações e distanciamentos,
para o âmbito da própria linguagem, e não somente debater os filmes com palavras.
Esse foi o caso das sessões de Iracema e Serras da Desordem, São
Paulo S/A e A Via Láctea, Menino do Rio e Houve Uma Vez Dois
Verões, Eu Matei Lúcio Flávio e Tropa de Elite (este no "extra-campo"
da programação). Qual balanço você faz dessas relações e como elas foram recebidas?
Cléber: O mais importante foi o comparecimento dos
espectadores a filmes como São Paulo SA, Iracema, Menino do Rio
e Eu Matei Lúcio Flávio. O passado se tornando presente. Quanto as recepções
mais reflexivas, só foi constatável em alguns textos, sobretudo no Filmes
Polvo, por meio de analogias feitas por Marcelo Miranda, Gabriel Martins e
Leonardo Amaral. No debate, falou-se mais dos filmes em específico, embora a Lina
Chamie, diretora do Via Láctea, tenha desenvolvido aproximações com São
Paulo SA. Isso tem de ser uma cultura, não algo isolado, por isso é preciso
insistir na idéia Cinética: Alguns filmes, de curta
e média-metragem, foram resgatados, digamos assim, pela Mostra, como Superoutro
(Edgar Navarro, 1989), que teve sua primeira exibição em Minas depois de 18 anos,
Mato eles? (Sergio Bianchi, 1986) e Aula de Sanfona (Inácio Araújo,
1982), filmes bastante radicais, seja pela inventividade, pela corrosividade ou
pela ausência de pudor e de limites morais. Exibi-los juntos, em uma mesma mostra,
respondeu a que demanda da curadoria? E esse diálogo histórico com produções dos
anos 80 diria algo sobre a produção contemporânea? Cléber:
Programar esses filmes foi uma forma de gerar curtos circuitos na percepção das
pessoas, por levá-las a ficarem sem saber como reagir e compreender, lidando com
outros códigos, com uma maneira de orgamizar imagens de outros momentos históricos,
com filmes alienígenas em nosso cenário atual. Esse choque proposto, se causa
algumas baixas, estimula algumas inspirações. É preciso levar em conta quem tira
algo para si desses filmes. Superoutro saiu de BH com novos admiradores.
Cinética: Ao longo deste ano, você estabeleceu uma
parceria forte com o pessoal da Universo Produção, completando um "triângulo
mineiro" com as mostras de Tiradentes, Ouro Preto e BH, onde tem se radicalizado
o conceito de curadoria de uma maneira a meu ver inédita no Brasil no âmbito das
mostras e festivais anuais (que sempre apelam ou para as "comissões de seleção"
ou têm seu produtor/idealizador como selecionador, nunca contando com um "curador
contratado", idéia curiosamente corrente nas artes plásticas, por exemplo).
Queria que você fizesse um balanço de um ano desta experiência. Cléber:
Foi um primeiro ano e, como tal, de descoberta contínua. A principal descoberta
foi pensar uma programação a partir de uma visão crítica, mas não no sentido de
seleção de melhores filmes segundo visão pessoal. Uma curadoria crítica tem de
pensar a produção disponível para além do gosto e do juizo de valor. Certos filmes
podem ganhar novos sentidos e novas compreensões quando colocados em uma programação.
É preciso sempre ter em mente ainda que a curadoria não inventa o cinema, nem
filmes, por isso a safra de filmes recentes é sempre o limite. Se a safra tiver
muitos filmes interessantes, naquele exato momento do ano em que as mostras são
realizadas, o curador tem dificuldade para tirar fora. Se ela for fraca, não há
o que fazer. A Mostra de Tiradentes é em janeiro: tem as
opções dos filmes ainda não lançados que passaram nos festivais de Rio, São Paulo
e Brasília. A questão ai está em como criar segmentos na programação. Há os destaques
desse evento, assim como propostas menos badaladas, que ainda não circularam muito
ou não circularam nada. Na segunda experiência com Tiradentes, em janeiro de 2008,
o perfil será ainda mais evidenciado. Esse perfil aliás já vinha se desenhando
nos últimos anos, na curadoria da Francesca Azzi, com uma programação que era
um pouco de tudo e debates interessantes. De agora em diante, a idéia é manter
o que está funcionando, mas com algumas inovações. Haverá maior espaço de exibição
e discussão crítica dos trabalhos dos novos realizadores, sobretudo os mais independentes,
sem uma estrutura forte de produção e distribuição. Muitos dos momentos mais vigorosos
do cinema brasileiro foram obtidos por realizadores em começo de carreira e com
pouco dinheiro, de Mario Peixoto a Glauber, de Nelson Pereira a Ruy Guerra, de
Rogerio Sganzerla a Bressane. Não é o caso de suspirar por modelos do passado,
até porque eu sou contemporâneo dos novos realizadores e estava nascendo quando
nossos cânones dos anos 60 foram realizados, mas é preciso respirar o melhor do
passado e injetar esse estímulo à produção dos novos diretores com pouco dinheiro
para trabalhar. Já Ouro Preto é diferente, em junho, com
poucas possibilidades de títulos, porque muitos passaram em Tiradentes, outros
já estrearam, alguns seguram para Gramado. No entanto, como o centro da discussão
por lá é a memória e a preservação, isso não chega a ser um grande problema. O
Cine BH teve apenas sua primeira edição, em outubro, com uma configuração ainda
em gestação. O que será o foco, das mais diferentes maneiras, é a questão da visibilidade
– o nome que se dá sempre, "mercado", eu não topo não. Porque o mercado
é um dos lados da visibilidade, mas não pode ser o único, porque a circulação
de um filme não é apenas isso. E o importante é discutir a visibilidade, porque
essa é uma discussão de quem vive com o cinema, de quem o deseja para mais gente,
e isso é diferente de somente discutir o mercado, porque essa é uma discussão
de quem vive de cinema, de quem ganha algo de material com ele. A
discussão de mercado é necessariamente econômica e classista. Todos precisam ganhar
e as contas se fecharem, mesmo com essas contas de ficção, cujo investimento em
geral é público, a renda é privada e o prejuizo é uma abstração. Quando se discute
visibilidade, não se trata somente de lucros, de contas, mas de circulação por
uma sociedade. É uma discussão, necessariamente, política e cultural. O mercado
é parte da cultura, do cinema, mas não é toda a cultura. O Cine BH nasceu com
essa visão. Se não há indústria e mercado, então falemos de que maneira os filmes
podem circular, mesmo sem mercado Como a noção de cultura
é privilegiada sobre a de mercado, busca-se semear a cultura do cinema, sobretudo
para um público que não vai com frequência aos multiplex, sem nenhum preconceito
e com alguma ousadia. O mais interessante foi colocar em diálogo filmes de diferentes
momentos históricos, com os títulos dos anos 60, 70 e 80 (como São Paulo SA,
À Meia Noite Levarei a Sua Alma, Iracema, Menino do Rio e
Eu Matei Lúcio Flavio) atraindo centenas de espectadores. Cinética:
Um debate que mobilizou bastante platéia e mesa em Ouro Preto dizia respeito à
existência ou não de um "cinema mineiro" que atendesse a este nome identitário.
Agora em BH você organizou uma mostra chamada Cena Mineira, que foi fundo na história
deste cinema e nas suas diferentes vertentes. Finalmente, acabamos de ver mais
uma vez, no Festival de Vitória, que os trabalhos mineiros ganharam o prêmio da
crítica, os prêmios de pesquisa de linguagem (nas categorias de curta e vídeo)
e o prêmio de videoarte - ou seja, 100% dos prêmios "conceituais". A
partir destes eventos e do simples fato de serem estas mostras mineiras que abrem
espaço para um trabalho curatorial intenso (como já são o do Indie e do Forum.doc,
aliás), a pergunta me parece inevitável: na sua opinião há algo de distinto, único,
acontecendo em Minas Gerais em termos de cinema no Brasil? Cléber:
Em termos de cinema, algo distinto, único, sempre aconteceu em Minas Gerais. E
quase sempre permaneceu à margem. Tirando algumas coisas de Humberto Mauro, nem
os resenhistas e cinéfilos jovens conhecem o que se fez em Minas nesses 100 anos.
Poucos viram algo de Carlos Alberto Prates Correia, muitos nada viram do Geraldo
Veloso. A cena de videoarte em BH também é pouco conhecida. Mesmo a Revista de
Cinema, talvez um dos grandes acontecimentos do cinema brasileiro nos anos 50,
era conhecida por poucos. No entanto, foi lida na redação dos Cahiers du Cinema,
segundo Mauricio Gomes Leite, o “nouvellevagófilo” da publicação. Essa
dinâmica de uma revista conhecida de fama, pouco lida de fato, mas capaz de atravessar
o Atlântico, parece ser um dos traços de uma certa mineiridade. Faz-se para si
mesmo, para os amigos, mas, por isso mesmo ou apesar disso, supera-se as montanhas. Há
um cosmopolitismo dentro do regionalismo, com questões estéticas que são questões
de cinema, antes de serem específicas de Minas. Nesse momento, não sei se o que
está acontecendo, de fato, é algo único e distinto. Talvez toda a ação pela cultura
cinematográfica seja algo único e distinto em todas as cidades fora do Rio e de
São Paulo. Não sei. O que existe, em um dos segmentos da produção de Minas, mas
não em toda a produção de Minas, é a sede de inovar. Eventualmente, inovação vira
código, ou aleatoriedade. Mas há a sede de pertencer a uma linha de experimentalismos
e ousadias. Já em muitos casos, nos videos e curtas, essa
sede produz efeitos potentes. Mexe-se na textura, na relação com a luz, com os
espaços, com os fluxos das imagens, com as dissonâncias. Há quem veja esse conjunto
como repetitivo. Há quem ache todos filhos da video arte ou todos primos em algum
grau de Cao Guimarães. Os diretores mineiros não suportam
mais essa colocação de tudo em um mesma caixinha. E com alguma razão. Há um abismo
entre Cao Guimarães e Carlos Magno. Um abismo não hierárquico. Um abismo de propostas.
Mas há um excesso de proteções, nos melhores discursos dos diretores, contra o
vínculo com Minas Gerais. Querem ser vistos como diretores, não como diretores
mineiros. Legítimo. Mas também são de Minas e, em alguma medida, são produtos
de seu tempo e de seu espaço. O que as mostras de Minas tem a ver com essa produção?
Tem esse demanda por fazer algo diferente, que tem a sua importância dentro de
sua proposta, que procura não imitar o que se tem feito, com abertura para acreditar
em quem tenha sensibilidade. Cinética: Em todas
as três mostras, a programação tem sido marcada pela importância quase semelhante
dada aos filmes e a seminários discutindo aspectos da programação e do pensamento
de cinema brasileiro contemporâneo. Qual a importância destes encontros, para
além da sua relação com a platéia presente naquele dado momento? Cléber:
Na verdade, essa relação com a platéia é o mais importante, sem dúvida. Primeiro
porque esses seminários não são tematizados na imprensa. Com o início da cobertura
de alguns sites, essa situação pode mudar, porque, além do interesse de alguns
críticos, há mais espaço para se refletir os debates em textos. Por isso, o debate
serve, sobretudo, para quem está lá. Não apenas para aquele momento do debate,
mas para os efeitos desses debates a médio prazo. Esse investimento na reflexão
será ampliado nas próximas edições, com oficinas não apenas práticas, mas também
de reflexão. A atividade intelectual tem tradição em Minas e precisar ser regada
para ser revigorada. Cinética: Enquanto Tiradentes
já está devidamente consolidado no calendário de festivais do cinema brasileiro
e na agenda de seus realizadores e produtores, Ouro Preto e, agora, Belo Horizonte
(curiosamente a mais "provinciana" das três mostras, por circunscrever
seu alcance a um bairro bastante particular da capital mineira) ainda estão construindo
suas identidades e relações com o público e profissionais. Em sua primeira edição,
a Mostra CineBH pautou-se pela efeméride dos 110 anos do cinema brasileiro e da
cidade que a abriga para montar uma programação de filmes e debates com um olho
no passado (assunto da Mostra de Ouro Preto) e outro no contemporâneo (objeto
da Mostra de Tiradentes). Para as próximas edições, qual será o enfoque dado pela
Mostra CineBH e como ela pretende contribuir ao atual cenário do cinema brasileiro?
Por mais efervescente que seja a cena cinematográfica mineira, há espaço no estado
para três eventos desse porte dedicados ao cinema brasileiro? Cléber:
Espaço para os três eventos existe, porque existe demanda, como se comprovou pela
frequência às sessões. Importante é cada um ser diferente da outra. Ainda não
é hora de fazer planos para o Cine BH, mas um momento de digerir o ocorrido. Não
tenho certeza se o modelo de grade desse ano permanece – o Diálogos Históricos,
quase com certeza. Os demais segmentos é preciso pensar com calma, ver qual será
a data do festival, como ele permanecerá sem a celebração de um aniversário. O
que fica, sem dúvida, é o conceito-chave: a visibilidade dos filmes. Precisamos
realmente pensar outras formas de exibição e maior profissionalismo e maior atitude
política com os meios existentes. O cinema brasileiro não pode ser público na
captação, quando o valor cultural impera como justificativa, e questão de mercado
na exibição, quando a cultura é do lucro.
Novembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br |