ensaios
Cineastas-doutores para um mundo doente (mas atraente)
por Eduardo Valente

Em texto postado em seu blog no recém-encerrado No Mínimo, Ricardo Calil percebeu há poucos meses o que chamou de um certo “cinema da sordidez” dentro dos mais recentes lançamentos brasileiros. Ao fazer isso, ele citou três filmes: O Cheiro do Ralo, Baixio das Bestas e Ódiquê?, cuja principal característica comum, dizia ele, era uma certa constatação de que “o brasileiro é, antes de tudo, um sórdido”. Mais do que apenas concordar com a observação desta curiosa coincidência temática (que Calil associou ainda a filmes anteriores como Cama de Gato e os mais recentes de Sérgio Bianchi), creio que é importante levar a questão um pouco além, e falar menos da presença da sordidez nestes filmes e mais na postura de seus diretores frente a esta. Porque, de fato, há ali nos filmes (e em especial na dupla formada por Ódiquê? e Baixio das Bestas) um duplo componente de construção tão mais perturbador que seus universos temáticos específicos.

Primeiro, entra em campo uma agenda moral: ao contrário dos filmes de Bianchi (onde fica-se na constatação de uma sordidez generalizada, beirando o niilismo – donde, “cronicamente inviável”), há aqui o desejo de um julgamento sobre o mundo a partir dos personagens. Ou seja: deve-se não apenas constatar a sordidez, mas implicar que ela é, afinal, “errada”. Estabelece-se assim um desejo de pensar o cinema de ficção como um espaço de denúncia de um estado de coisas “real”, num movimento que parece enxergar o cineasta como alguém entre o padre que arranca a confissão e um médico diagnosticador: alguém que consegue perceber, com uma cautelosa distância, os sintomas de uma doença (de alma ou física – ou ambas) já completamente disseminada.

Após ter sido feito o diagnóstico (que explicita as doenças da Zona da Mata pernambucana e da juventude de classe média alta carioca), em se tratando de um cinema de ficção, entra em campo o cineasta como encenador. E é aí que, nos dois casos (assim como já acontecia com igual força em O Cheiro do Ralo, que já discuti bastante aqui), o jogo se torna ainda mais complexo: no afã de denunciar uma realidade, o cineasta acaba se espelhando e igualando no uso dos seus mecanismos de poder sobre a percepção do espectador (ou seja, a linguagem cinematográfica e a construção dos personagens) aos que ele mesmo julga de maneira inclemente. No desejo de criar retratos de comportamentos desviantes, a câmera se apaixona e se irmana aos seus objetos de atenção.

Antes de irmos aos filmes em si para tentar encontrar evidências do acima descrito, vale dizer de saída que não é preciso se sujar para constatar um mundo duro – e aqui ficamos em apenas dois exemplos. Primeiro, os personagens no limite de um Rosetta, dos irmãos Dardenne: absolutamente falhos, cheios de ódio ao mundo em seus corações, eles continuam sendo filmados de frente, olho no olho, no que revelam na sua própria condição de “pecadores doentes” (para ficarmos nos termos acima usados) a possibilidade (se ela existe, afinal) de sua salvação. No espectro oposto, lembremos do Saló, de Pasolini: retrato absolutamente extremo do “homem como lobo do homem”, onde, no entanto, os mecanismos de poder e opressão dentro do plano narrativo e no trato da câmera com o objeto nunca se confundem. Em Saló, as estruturas de poder inerentes ao trato humano é que são podres, não os próprios seres em si. E filmá-las na frontalidade e totalidade de sua abjeção é um claro exercício de confronto com esta “realidade” – sem qualquer traço de atração, sadismo ou glamourização frente àquilo que é abjeto. Ou seja: a um mundo sádico não precisa se igualar um cineasta de mesmo trato.

Ódiquem?

Entre os dois filmes citados, Ódiquê? é curiosamente o mais simples e complexo, ao mesmo tempo. Mais simples porque seu diagnóstico parece tratar de uma realidade mais direta e exposta (ainda mais depois do episódio do espancamento da doméstica na Barra da Tijuca), e que é tratada como tal através de um “naturalismo moderno” na linguagem – ou seja, câmera na mão, muitos cortes, elenco jovem em atuação realista, articulação de trama. No entanto, a esta simplicidade de aproximação com o objeto o filme acaba impondo uma complexidade de detecção de ponto de vista, exatamente pela própria confusão que parece tomar conta de seu registro o tempo todo: afinal de contas, as ações daqueles três jovens personagens são condenadas ou não pelo filme/autor?

Esta pergunta poderia até dar vazão a um filme verdadeiramente perturbador no jogo de identificação que estabeleceria com o espectador. No entanto, logo o filme deixa claro que sua estranheza diz menos respeito a uma pensada estratégia de confusão de fronteiras, e sim fala muito mais do fascínio real que o comportamento daqueles jovens e o seu universo causam eventualmente nos elementos da linguagem que constrói o filme (algo evidenciado principalmente na trilha sonora, mas também na atuação/escalação do elenco, uso da prosódia típica, exploração de ambientes/corpos). Pois, quando precisa ser panfletário, o filme não deixa dúvidas: o espectador deve ver que estes jovens são inconseqüentes, sem limites, errados. E nos momentos em que eles parecem agradáveis protagonistas de uma história de aventuras busca-se menos um retrato complexo (“eles podem ser errados e ao mesmo tempo familiares”) do que narrar uma história que precisa avançar com sua trama em um ritmo ágil – e aí é a câmera, o corte, a forma de encenar que parece admirar seus personagens, ainda que continue dispensando que o espectador o faça também.

Além disso, claro, existe a questão da conclusão da trama, como já notou em detalhes Daniel Caetano, na Contracampo: quando, mesmo com sua falta de sutileza marcante em separar joio do trigo nos olhos do espectador (sadismo de brincadeira infantil, estupidez de ingenuidade), o filme ameaça mergulhar em mares mais profundos de perturbação (numa quase equivalência com o que seria o espancamento real na Barra), busca-se a saída pelo “jogo de roteiro”, pela brincadeira inofensiva, pela inconseqüência juvenil sobre a real criminalização dos comportamentos. Ou seja, a denúncia, se há, fica pela metade: assim como os pais dos pitboys da Barra real, o filme absolve os seus personagens. Os meninos, afinal, podem até ser um pouco “levados”, mas não podem ser tratados como “bandidos comuns”. Feito isso, o filme explicita sua verdadeira postura (que, reafirmo, já estava mais que compreendida), que até podia parecer complexa a princípio: o fascínio de sua linguagem pelos protagonistas vem do simples fato de que, se reprova o que eles fazem muitas vezes, e deixa claro quando o faz, também entende que é apenas uma “juventude inconseqüente”. O perdão dos pecados vem então não pela naturalização do mal no homem, mas por considerar que eles não são “tão maus assim”.

“Quem gostou, gostou”

Quando, em Baixio das Bestas, Everardo (Matheus Nachtergaele) vira-se para a câmera e fala com ela como se fosse uma velha conhecida, se estabelece uma proximidade entre personagem e autor que, analisada aqui na revista por Cléber Eduardo, pode criar a falsa impressão de que este agroboy ensandecido pelo tédio e pela falta de perspectivas é o personagem que encarnaria um certo “alter-ego” às avessas dentro do filme. No entanto, uma análise mais apurada do que se diz, faz e filma em Baixio nos revela que o subconsciente do filme está muito mais próximo de um outro personagem: o velho Heitor (Fernando Teixeira). Não por acaso, depois dos planos iniciais da usina em decadência (aos quais voltaremos mais adiante) e da primeira cena com Auxiliadora atrás do posto, quem nos “introduz” o ambiente narrativo do filme é Heitor, que destila junto ao amigo no banco da cidade, todo o seu ódio ressentido do mundo, num indisfarçável moralismo hipócrita de quem explora com atos a podridão do mundo enquanto a denuncia com palavras. Ao final, seu bordão: “essa é só a minha opinião; quem gostou, gostou”.

Cinematograficamente, Baixio das Bestas lembra bastante a prosa palavrória de Heitor: assim como esta é dona de uma beleza inegável na sua prosódia particular e inspirada (de Hilton Lacerda, roteirista do filme com Cláudio Assis), o filme parte de um mesmo ponto de partida (“o mundo é podre, fede”) para expô-lo com notável domínio de sua linguagem. Neste domínio, exercido acima de tudo pela câmera de Walter Carvalho, o filme trai em pelo menos três maneiras diferentes o seu julgamento moral inicial. Primeiro, ao denunciar a fetichização dominante do corpo feminino, e sua objetificação, enquanto a reproduz: o que vemos desde o primeiro plano de Auxiliadora acima citado. Claro que o cineasta pode afirmar que enxergar esta menina como “objeto de desejo desviante” está nos olhos de quem vê, mas basta observar como estas cenas são iluminadas e filmadas nos movimentos de câmera lânguidos pela adoração a este corpo “indefeso”: não se trata de uma câmera “imparcial” que joga para o espectador uma imagem para que este se projete nela, mas sim uma câmera que faz de tudo para construir um olhar do espectador, e que ao fazê-lo reproduz os estímulos à exploração do voyeurismo – de novo, como seu Heitor.

A segunda traição se dá no pudor da câmera frente às duas cenas de maior violência – o estupro de Auxiliador e o seviciamento de Dora. Ao se virar frente à estas cenas, a câmera trai primeiro o discurso de um cinema que “precisa mostrar as coisas como são”, aparentemente escapando de um sadismo revelador daqueles momentos, mas de fato o estimulando pela via não só da imaginação do espectador, mas acima de tudo pela reencenação da tragédia das personagens despersonalizadas em belos jogos de luz e sombras. De novo: não seria impossível filmar tais atos sem descambar para sua “romantização” ou sua espetacularização – questão de como iluminar, de como enquadrar, de como encenar. Há muito mais espetacularização da linguagem no cuidadoso movimento que se vira para o “teatro de sombras” e se volta à personagem desfalecida no momento “seguro”. Mais do que uma questão de “epater la bourgeoise”, como viram alguns, este pudor frente ao inominável demonstra de novo uma maneira de tornar o grotesco (humanamente) em momento sublime cinematográfico.

Finalmente, há a terceira cena, que revela a traição final: a do espancamento de Bela (Hermila Guedes). Se toda aquela no cena no puteiro é filmada como um teatro dos horrores, a câmera do alto com que Assis e Carvalho optam por filmar a sequência de atos de Everardo que culminam com os abjetos chutes na cara de Bela, é mais do que apenas mais uma opção pela virtuose visual que torna belos esteticamente momentos de exploração. De fato, a câmera do alto, ao filmar seus personagens entre os corredores do puteiro, os iguala a pequenas formigas perdidas num formigueiro, ao sabor de um cruel deus-câmera, que tudo vê sem intervir, embora tenhamos a nítida sensação de que ele poderia pisotear aquelas criaturas a qualquer momento. Essa câmera-Deus é apenas um dos sintomas do moralismo um tanto católico do filme (lembremos que Auxiliadora esteja atrás de uma igreja, filmada como uma santa enquanto serve de estímulo à masturbação dos homens pecadores), mas não é demais notar uma coisa: aos seus olhos, igualam-se Everardo e Bela. Agressor e agredida estão no mesmo nível: abaixo de quem olha. Só que a agredida, diga-se, está um pouco mais abaixo.

Corta-se imediatamente para o plano dos trabalhadores rurais, em registro documental, no alto do caminhão que os leva para o trabalho. Não é preciso ser um estudioso das técnicas de montagem via Eisenstein ou dos experimentos primeiros de Kulechov para compreender a mensagem subliminar: aquele teatro dos horrores tem os pés fincados no real. Ou seja: valida-se com um plano (assim como faziam os planos do final de Amarelo Manga) não apenas uma determinada situação como “real” (no sentido extra-fílmico), como de lambuja atesta-se a autenticidade de encená-la e filmá-la da maneira com que a vimos anteriormente. O real, portanto, entra como “lembrete social” da ficção.

As tintas religiosas na maneira de filmar a abjeção humana e a mistura de registro entre a ficção “super-humana” e a não-ficção aproximam muito o cinema de Cláudio Assis daquele do mexicano Carlos Reygadas – em Japón, mas especialmente em Batalla en el Cielo. No cinema dos dois, os seres humanos são apenas marionetes de uma narrativa trágica pré-estabelecida. Assim é que os já citados planos da decadência da usina no começo servirão como bula do ambiente sob a qual viverão aprisionados seus personagens depois. Da mesma forma, ao final temos Maninho, o que ameaçava se rebelar contra a opressão reinante numa explosão bêbada de raiva, tomando o lugar no quadro que era de Heitor no começo: entre o ambiente determinante e a “substituição final”, os personagens apenas jogam papéis pré-estabelecidos. Não por acaso, a profecia de Heitor (mais uma vez legitimado como o personagem profético que compreende as regras do mundo) para Auxiliadora (“você vai virar puta de beira de estrada”, diz ele ao repreendê-la) é cumprida no final. Mesmo morto, é Heitor quem dá as cartas, aprisionando a neta no futuro que predisse para ela, e tendo seu potencial “oponente” como seu sucessor. O filme, assim, fecha o cerco aos personagens-formiga ao mesmo tempo em que se irmana de vez ao olhar de mundo daquele que busca denunciar.

ditoria@revistacinetica.com.br


« Volta