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O cinema segundo Cindy Sherman
por Cezar Migliorin

Cindy Sherman dá um nó na relação de identificação que o espectador clássico do cinema estabelece com seus personagens. Esse nó se estabelece por um duplo movimento que nós espectadores fazemos quando estamos diante de seus trabalhos da “fase cinematográfica”. Este período, que vai de meados dos anos 70 até meados dos anos 80, está exposto em uma grande retrospectiva que o Museu Jeu de Paume, em Paris, faz da obra da artista. São 250 trabalhos desta artista americana, apresentados cronologicamente – ela que desde sua primeira exposição, obteve reconhecimento da crítica e sucesso comercial.

Diante dos “trabalhos cinematográficos” – Untitled Film Stills, Rear Screen Projection e Centerfolds/Horizontals –, reconhecimento e estranhamento se juntam e se tensionam nas fotos em que a artista (re)cria personagens e imagens cinematográficas. Assim como no cinema clássico, reconhecemos as imagens – mas não sabemos de onde. As imagens nos são familiares e nos conectam a memórias do universo do cinema, mas não podemos dizer a que filme ou a que diretor. A cada trabalho nossa memória parece reconhecer e falhar.

O nó se torna ainda mais complexo quando, nesse movimento em que a memória parece quase alcançar a origem das imagens e territorializá-las, reconhecemos, em todos os trabalhos, a presença da própria Cindy Sherman. A artista atua construindo um portfólio de uma atriz que nunca existiu. Uma atriz que atravessa a história do cinema: dos clássicos americanos dos anos 40 à nouvelle vague, passando pelo cinema underground americano e à câmera na mão – mas, ainda aqui, as referências são quase explícitas e ainda assim algo foge. Quase como se as personagens que a artista vive transformassem a própria história do cinema.

A exposição do Jeu de Paume cobre diversas fases da carreira de Cindy Sherman, e ali podemos perceber como esta relação com o mundo das imagens ganha nova dimensão a partir dos anos 90. Neste período, a artista vai desaparecendo das imagens: torna-se digitalizada, artificial, cheia de próteses e plásticas. Nas imagens, há a aparição de corpos onde todos estes meios de intervenção na imagem do humano se sobrepõem e se confundem; não se sabe mais o que é silicone, máscara, photoshop. Neste desaparecimento do corpo, não é mais a artista que transita entre várias personagens, mas um manequim que assina como a artista. A artista empresta a história de um corpo às figuras de plástico que se confundem com ela própria. É um período de imagens mais violentas e distantes de um certo “realismo cinematográfico” dos primeiros tempos. Nos anos 90, Cindy Sherman perde também o respeito pelas imagens que com uma ironia ela referenciava na fase cinematográfica. Neste momento, tratando a história da arte com escracho, suas fotos são debochadas e se aproximam da paródia.

Se toda relação de Cindy Sherman com o cinema clássico passa por uma potencialização destas imagens através deste curto-circuito que a artista forja entre memória – pessoal e coletiva – e as imagens cinematográficas, nas imagens paródicas este curto-circuito não se dá. Para vencer o clichê não basta a paródia, não basta perturbar os sistemas sensório-motores. Quando Cindy Sherman constrói as paródias em torno de Raphael, Caravagio ou Goya é o efeito – ou falta de um - sobre a memória mesmo do espectador que se desloca. Entramos em um processo de reconhecimento das obras e do lugar da artista, que desmancham a instabilidade que as imagens cinematográficas inventam.

O trabalho de Cindy Sherman é frequentemente pensado dentro de uma chave pós-moderna, onde seus diversos papéis são vistos como um fluxo de uma identidade móvel e sem um “eu” que se dê a ver e a reconhecer. Como se esse eu da artista fosse mais uma medição entre um catálogo de tipos oferecidos pela mídia – o cinema inclusive – do que propriamente uma construção ou invenção de uma subjetividade. Essa abordagem não deixa de fazer sentido e ajudar na fruição das obras de Sherman, entretanto a ironia e o imaginário que potencializa essas imagens, que já nos pertencem, parece ser o que há de mais forte ali. O catálogo de subjetividades de Sherman não existe fora da ironia especulativa dos tipos criados e perdidos, mas existe também porque ali há uma artista, uma mulher.

Há ainda uma relação atemporal de Cindy Sherman com sua imagem e com os papéis que ela interpreta. Curiosamente o primeiro trabalho da exposição – Untitled A-E de 1975 – guarda forte vínculo formal com o último, Clowns: um de 1975, outro de 2005. Nos dois a artista assume o palhaço, com o prazer e a alegria de sair de si e transformar o corpo. Esta possibilidade de identificação é forte fator de conexão entre obra e público – como no cinema.



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