Cildo, de Gustavo Rosa de Moura
(Brasil, 2008)
por Rodrigo de Oliveira
Um
problema de instalação
Obedecendo a uma seqüência cronológica estrita, Cildo
começa apresentando aquilo que poderia ser a gênese do artista em
que Cildo Meireles se transformou. Primeiro a história de um andarilho
que se abrigou ao pé de sua casa da infância e que, no dia seguinte,
desparece deixando para trás uma casinha feita de gravetos, para o maravilhamento
do menino. Depois, também pela infância, a história da chegada
do homem à Lua e como, desde então, foi a figura de Michael Collins
- aquele que apenas orbitou ao redor dela, sem nunca pousar de fato - que sempre
o interessou mais que aqueles outros dois, cujas imagens da aventura espacial
se espalharam pelo mundo. Como em todos os depoimentos que Cildo dará ao
longo do filme, aqui ele é ao mesmo tempo engraçado, agradável,
e absolutamente apaixonante em seu relato, mostrando uma consciência incrível
sobre a natureza de seu trabalho (feito todo grande artista, ele não se
esconde atrás da máscara do "gênio intuitivo": tudo
é pensado, tem um sentido, uma teoria, uma maneira de se colocar em relação
ao mundo e a história da arte que não nascem puramente dos sentidos,
mas de um trabalho árduo na decodificação deles).
Quase
uma hora de filme depois, veremos Cildo dando uma entrevista a uma jornalista
brasileira diante no Tate Modern, em Londres, e ele surge repetindo exatamente
a mesma história, de novo apaixonante, seguro e fazendo parecer que houve
algo de muito especial na pergunta da jornalista que o remeteu a uma história
de sua formação que agora divide como se novidade fosse. Momento
parecido acontecerá na abertura da exposição "Babel",
em um museu do Espírito Santo: primeiro Cildo está em seu ateliê,
dizendo para a câmera do filme o que queria provocar no público ao
construir uma torre de rádios sintonizados em estações do
mundo inteiro, depois Cildo está dando uma entrevista para a tevê
local, repetindo o mesmo conceito à câmera jornalística, quase
palavra por palavra. Que Gustavo Moura coloque isso no filme de maneira tão
direta já deixa claro que, ao mesmo tempo em que há no documentário
um espaço maior e mais efetivo para a exposição dessas idéias
que Cildo Meireles tem sobre si e sua obra do que àquele concedido em uma
entrevista de jornal, também parece não haver nada que o diretor
possa perguntar para o qual o artista já não tenha uma resposta
imaginada e, em muitos casos, repetida em moto contínuo a qualquer interlocutor
que apareça, não importa o quão elaborada seja a tal pergunta.
Tudo o que Cildo diz no filme é novo apenas para ele, o filme, e não
para Cildo. O filme é um espaço único, mas definitivamente
não é um espaço exclusivo. Se
sobre a fala de Cildo Meireles o filme fica, portanto, impedido de intervir, resta
a Gustavo Moura tentar trabalhar sobre o lugar onde a experiência do artista
é aberta ao ineditismo e à exclusividade, e esse é o lugar
do público diante da obra - que, também com palavras do próprio
Cildo, é pensada exatamente para esse fim, para que o contato com uma instalação
sua seja renovável sempre que uma nova pessoa se coloque dentro dela e
a perceba a partir de seus próprios sentidos, guiados pelo que chama de
"alta definição": uma obra tão segura de si que
impeça qualquer elucubração exterior a ela, restando o interior,
e apenas ele, para que a experiência seja real e a fruição
efetiva. E aí está a grande questão estética de Cildo:
como filmar uma obra que é um espaço tridimensional existente, e
não apenas imaginado por uma perspectiva forjada à pinceladas? Os
filmes que Alain Resnais fez sobre obras de Van Gogh e Picasso vem à mente:
lidando com a superfície plana, figurativa, o cineasta criava lógicas
narrativas internas não necessariamente existentes na obra (duas figuras
humanas vistas de longe como parte do mesmo quadro poderiam, a partir da criação
de uma dinâmica de plano e contraplano que os isolasse, passar a dialogar
sem que o artista houvesse nunca previsto aquele espaço como tal), e com
tudo isso criava-se uma terceira instância de aproximação
do quadro, que não tentava "entender" a visão do artista
nem mimetizar a experiência do espectador diante da tela, mas sim torná-la
um objeto de cinema autônomo. Cildo, ao contrário,
tentará a segunda para chegar à primeira: colocando-se no interior
das instalações, tenta reproduzir a sensação física
do espectador para que, assim, todos os conceitos desfiados por Meireles em seus
depoimentos possam tomar corpo, sair da teoria e ganhar alguma materialidade aos
olhos do público do cinema. E essa é, evidentemente, uma tentativa
que já nasce frustrada. Reproduzir a experiência da instalação
não é apenas instalar-se nela, muito porque o problema com que Gustavo
Moura se depara é exatamente oposto ao de Resnais: não é
o caso de dar relevo e profundidade àquilo que é naturalmente plano
(a tela da pintura), mas de sujeitar o que é naturalmente cheio de relevo
e profundidade à uma armadura irremediavelmente superficial (a tela de
cinema). Se a afirmação de Cildo Meireles de que "o melhor
lugar para a obra de arte é a memória" é verdadeira
- e firmemente acreditamos que sim - resta ao filme, em sua insistente tentativa
de assumir o ponto de vista de um espectador real diante de uma obra que incorpora
tempo e espaço simultaneamente, forjar uma memória de trabalhos
nunca vividos por quem o assiste (não é o caso de ver, mas de viver,
quando se trata de Cildo Meireles). Ao filme é impossível superar
sua natureza de eterno retardatário: o registro até está
lá, reproduzido "eternamente" pelo cinema, mas a experiência
é do domínio de um passado inalcançável e, portanto,
irreprodutível. Não à toa, Cildo
é melhor justamente naquilo em que o cinema consegue mais se aproximar
da espacialização da arte instalativa, a edição de
som. Se da planura da tela e sua profundidade falsa não podemos fugir,
pelo menos o som ainda tem uma dimensão de profundidade real: temos caixas
de som atrás da tela, nas laterais e no fundo da sala de cinema, de cada
uma delas surge um ruído diferente, percebido pelo corpo a partir de lados
diferentes, e mesmo de sentidos diferentes (o tato é aguçado tanto
quanto a audição, os ruídos agem na pele), e tudo pode mudar
dependendo de onde o espectador se sente, em que posição fique na
poltrona, à que distância esteja de qual saída de som. Isso
Cildo faz de maneira brilhante, o que o torna desde já um desses
filmes que nasceram verdadeiramente para a experiência in loco (esperar
para vê-lo em DVD ou na televisão seria um pecado). E assim, por
uma via paralela, e que certamente chamará muito menos atenção
do que a retórica encantadora de Cildo Meireles ou a chance frágil,
mas possível, de se conhecer seu trabalho sem precisar esperar por uma
exposição ou bancar uma viagem a Londres, Cildo acaba conseguindo
conversar com seu objeto na mesma sintonia e, mais importante, usando a voz produzida
pelo artista através dos ruídos para construir a sua própria
voz. Agosto de 2009
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