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Pesadelo Mortal (John Carpenter's Cigarette Burns),
de John Carpenter (EUA, 2005)
por Francis Vogner dos Reis

O Fim Absoluto do Mundo

Para John Carpenter, sua arte implica na destruição do “velho”, como no fim de Fuga de Los Angeles em que Snake Plissken desligava o mundo e dava boas vindas a uma nova realidade (“Welcome to the human race”); e também no desfecho de Fantasmas de Marte em que o bandido James Desolation Williams só conseguia se unir à policial Ballard à partir do caos instaurado. O mundo novo nunca é a legitimação de uma verdade, mas a crise de todas elas. Por isso mesmo, ter como mote principal deste seu novo trabalho a procura de um filme chamado La Fin Absolue du Monde (O Fim Absoluto do Mundo) é repertório mais que conveniente para que o cineasta exercite seus interesses temáticos.

Em Pesadelo Mortal, um homem é contratado por um ricaço para achar a cópia única de um filme dado como perdido. O homem é Kirby Sweetman (Norman Reedus), pesquisador de filmes raros e dono de uma sala de cinema “pulgueiro” onde exibe só filmes de horror. O milionário é o misterioso Sr. Bellinger (Udo Kier) e o filme chama-se La Fin Absolue du Monde, uma peça obscura de um falecido cineasta chamado Hans Backovic, que quando exibido no Festival Internacional de Cinema Fantástico de Sitges teria sido responsável por uma violenta histeria coletiva que tomou conta da sala de projeção.

Apesar das visíveis semelhanças entre Pesadelo Mortal e a obra-prima de Carpenter, de 1995, À Beira da Loucura, o novo trabalho de Carpenter – contribuição do diretor para a série Masters of Horror do canal a cabo Showtime Network – é um filme de narrativa menos movediça e com uma mise-en-scène mais plana. Existem muitas semelhanças é claro, a começar pelo enredo de investigação, mas, esteticamente o fato do filme ser um projeto para televisão limita o diretor a explorar seu material com mais sagacidade. Não temos o formato de imagem scope, tão caro a Carpenter, e mesmo as situações dramático-narrativas carecem de um pouco mais de desenvoltura (58 minutos pesam no resultado final). É como se seu estilo se apertasse em um formato estranho aos seus interesses de encenação.

De qualquer maneira, Pesadelo Mortal é uma obra de rara força no cinema contemporâneo, realizada por um diretor que é um dos maiores cineastas americanos em atividade. Se o tema do filme dentro do filme não é novo, e já há tempos virou um fetiche de alguns projetos de cinema pós-moderno, John Carpenter tem talento o bastante pra transcender as questões de meta-linguagem mais rasteiras e desenvolver um estudo sobre a zona intermediária que separa e ao mesmo tempo une obra, autor, público, ficção e realidade e entender nesse interstício o que é gerado disso tudo.

O título original Cigarette Burns diz respeito às queimaduras de cigarro que marcam o canto do fotograma de um filme e anunciam a eminência de um momento decisivo. O projecionista do cinema do protagonista Kirby Sweetman tem o costume de cortar essses fotogramas e guardar como lembrança (vemos por exemplo, quando ele faz isso com Profondo Rosso de Dario Argento). Segundo ele, se esse aviso prévio é retirado, o público fica mais desarmado e inofensivo. Mas o título original de Pesadelo Mortal é Cigarette Burns por causa desse trecho? Não, certamente. Essa informação na verdade é o prenúncio da própria relação de espectador com o que virá a seguir. Pesadelo Mortal integra isso em seu próprio conceito.

O protagonista (Sweetman), ao aceitar a missão incumbida pelo milionário de procurar La Fin Absolue Du Monde, se vê espectador-participante da própria ficção, e como dirá a viúva do cineasta”, quando pergunta a Sweetman se ele tem tido flashes de queimaduras de cigarro: “ele (o filme) já faz parte de você“. A obsessão por encontrar o filme, se torna também uma ânsia em vê-lo, em comprovar se todas as histórias são verdadeiras. Nessa busca, Sweetman é sujeito a toda sorte de experiências que suscitam fissuras não só na trama, como no próprio corpo do filme: além dos flashes que o assombram, existem muitos vácuos gerados pelos apagões que ele tem em determinados momentos. Quando ele volta a si vê em seu entorno uma carnificina, supostamente causada por ele mesmo, mas que nós não vemos e ele não se lembra. O cineasta interfere diretamente, e é como se excluísse do filme os fotogramas que dessem uma explicação mais lógica desse surtos.

Segundo a lenda em torno de La Fin Absolue du Monde, quem assiste o filme é afetado por ele. Carpenter como de costume vai direto ao ponto: “Filme é magia. E nas mãos certas, uma arma.” A frase de abertura vem dizer que este é o trabalho do cineasta que, mais do que o cinema, trata da relação da obra de arte com seu autor e com o publico a qual é destinada e o que nasce nessa relação. Isso já foi tratado em À Beira da Loucura, mas esta seria a primeira vez que o cinema (o corte e o choque do próprio específico cinematográfico) é tema do autor. Essa trinca autor-obra-público é ne verdade um pacto que confere vida ao filme.

Mas Carpenter não é nunca foi um paranóico que acredita em mensagens letais e subliminares. Em uma sequência, um crítico de cinema afetado por La Fin Absolue du Monde vê como impossível codificar sua mensagem. Sua casa é tomada por centenas de pilhas de papel que formariam uma só crítica do trabalho de Backovic, ainda em processo. A resposta que o crítico dá à Sweetman não é sobre o que o filme fala, mas sobre o experimento, o efeito dele sobre o público. O mesmo com a viúva de Backovic: ela não explica ao protagonista no que exatamente se baseia o poder de La Fin, e sim que ele tem origem no mundo que nós conhecemos (da fome, da miséria, da dor). Ou seja: todos fazem parte do filme : ele é algo instrisecamente inerente a todos – quem banca, quem faz e quem vê.

A questão em torno do efeito no espectador não é uma pregação, mas uma simulação. A relação entre obra e espectador não é passiva, mas ativa de ambos os lados e a transformação de quem “vê” é inevitável. Em alguns dos momentos mais fortes vemos Udo Kier se unindo orgânicamente à moviola depois de uma sessão de La Fin, e um anjo sem asas dizendo que “nós fazemos parte do filme”. La Fin Absolue du Monde só existe nessa relação entre todas as partes, não é uma peça obscura que carrega uma maldição (como um mcguffin de um filme de horror). A semelhança que carrega não só lembra À Beira da Loucura, mas também outro grande filme do cinema contemporâneo, demonlover (lançado no Brasil como Espionagem na Rede) de Olivier Assayas: um mundo não se faz (e não existe) senão por meio de imagens, e por mais que pensemos o contrário, isso não é indiferente a ninguém.


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