Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski
(Brasil, 2009) por Rodrigo de Oliveira
Muitos
tiros, nenhuma misericórdiaHenning Boilesen
era um dinamarquês radicado no Brasil, líder de uma grande indústria de gás. Como
boa parte do empresariado paulista nos anos 60 e 70, ele financiava o regime militar
por medo da “cubanização” do país – um financiamento direcionado principalmente
para a perseguição de revolucionários e a tortura. Mas estes são apenas os “dados
pessoais e curriculum vitae” do personagem, para usar expressões do próprio filme,
pois na descrição do protagonista, também de acordo com o próprio filme, interessam
em igual importância coisas do tipo “conseguiu ser um ponta-esquerda razoável,
pelo menos para os padrões da Dinamarca”, ou ainda “todo mundo sabia que ele gostava
mesmo é de mulatas”, com todas as piadas propositalmente inseridas aí. Quando,
em algum momento de Cidadão Boilesen descobrimos que o industrial era amigo
do lendário delegado Sérgio Fleury, para logo depois vermos um trecho da incorporação
chanchadesca que Cássio Gabus Mendes e Helvécio Ratton assinaram em Batismo
de Sangue, percebemos que ser “amigo do Fleury” para Chaim Litewski significa
necessariamente ser digno do mesmo tipo de desconstrução pelo ridículo que com
Ratton era puramente involuntário, mas que aqui assume caráter de matriz narrativa
mesmo. Em mais de um aspecto, Cidadão Boilesen serve
como sadio contraponto a Memórias Para Uso Diário, de Beth Formaggini.
Não exatamente pelo recorte temático mais óbvio (no último se tratava especificamente
dos desaparecidos políticos como vítimas de um regime, e no primeiro foca-se apenas
nos algozes), mas porque no fundo ambos estão tratando de um mesmo problema de
ordem dramática: como filmar frontalmente os humores envolvidos durante o regime
de exceção quando faltam exatamente as pessoas a quem filmar, seja porque foram
mortos ou porque aqueles que mataram nunca tiveram que se encontrar, de fato,
com um julgamento institucional que demarcasse ali alguma culpa? Se o filme de
Formaggini lidava de maneira muito emocionante e compreensiva com essa sua incapacidade
de ser mais efetivo que a campanha de amnésia coletiva que tomou a sociedade brasileira
desde então (sobre isso falei melhor numa crítica
do filme), Cidadão Boilesen é uma resposta, muito incisiva em seus
métodos e posicionamentos, a uma outra incapacidade que é a de confrontar os carrascos
de frente. E
confrontar aqui, não raramente, envolve o escárnio e a purgação pública. Isto
está posto desde a bastante incomum trilha sonora do filme, que surpreende na
primeira vez em que aparece (logo após o prólogo “veja como o Brasil não tem memória”,
filmado na rua que leva o nome de Boilesen e onde, é claro, ninguém sabe quem
foi o sujeito). Há um momento idêntico em Memórias, mas lá se trata dos
nomes das vítimas: uma placa de rua significa uma marcação de posição em relação
ao esquecimento do papel dos guerrilheiros, e os parentes das vítimas estão por
lá. Aqui, Chaim Litewski responde a esse momento com surf music em altíssimo
volume – numa estridência que, aliás, é uma constante no filme. Seja no próprio
tratamento sonoro (algumas passagens de plano usam barulhos de tiros para marcar
a tensão), ou na maneira como a figura de Boilesen e seus apoiadores/defensores
aparecem em cena. Se comédia é o resultado da tragédia mais o tempo, como diz-se
por aí, 2009 é tempo o bastante para que, mesmo ouvindo depoimentos de parentes
e amigos do protagonista, dando a elas a chance de expor seu ponto de vista favorável
à figura central, não se tenha nenhum pudor em assinalar o quão grotesca e indigna
do respeito sacrossanto e polido habitual nos documentários “sérios” ela era.
E não que Cidadão Boilesen não seja sério, pelo contrário.
A postura política é cristalina, e o sarcasmo está aí para ser pensado como estratégia
e não conveniência ou tentativa de “frescor” (pensado pelo cinema brasileiro,
por que não, uma vez que afirmar uma maneira de abordar o personagem aqui significa
negar todas as outras, inclusive as reencenações históricas dos filmicamente citados
Batismo de Sangue, Lamarca, O Que é Isso Companheiro? e Pra
Frente Brasil, entre outros). O episódio da execução de Boilesen por um grupo
guerrilheiro é tratado em animação de linguagem quadrinesca, e montagens também
animadas sobre fotos de arquivo do industrial ressaltam um lado vilanesco, demoníaco
no sentido estrito do termo. O que o filme deixa claro é que não há condescendência
possível quando estamos diante de figuras naturalmente caricaturais (e nisso ajudam
os depoimentos de antigos coronéis e servidores do regime, palhaços de si mesmo
em tudo o que falam). Esclarecimentos
de fato o filme têm muitos, mas os mesmos de sempre. Há um longo entrecho que
tenta (como rigorosamente todos os outros filmes, seja por letreiros ou montagem
em bloco) explicar o que foi e como funcionava a ditadura militar – e o didatismo
mais-do-mesmo aí talvez se explique pela tentativa amplamente anunciada por Chaim
Litewski de espalhar o filme por universidades e centros de estudo como objeto
de discussão histórica sobre o papel dos civis na alimentação do terror. Aí abundam
clipes paralelos de execuções com final da Copa de 70 e sangue cenográfico espirrando
em fotos de passeatas. Mas o filme é sempre mais contundente quando está lidando
diretamente com Henning Boilesen, sobretudo porque o próprio ineditismo da abordagem
leva não só aos entrechos cômicos como também, dada a abertura do escopo, a depoimentos
incrivelmente fortes de personagens que conseguem escapar à auto-indulgência (e,
não curiosamente, estes depoimentos são invariavelmente dados por membros da guerrilha
e da oposição não-armada). A fala do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso sobre como “ninguém de boa formação vai ficar feliz porque uma
pessoa foi assassinada, mas, naquele caso, era um a menos” talvez ganhe mais destaque
por conta da sinceridade de uma figura pública que fez questão de apagar este
passado afirmativo. Mas Cidadão Boilesen também traz à cena Carlos Eugênio
Sarmento da Paz, professor de música que comandou a ação de “justiçamento” contra
Boilesen e que, em algum momento, afirma com todas as letras que foi ele a dar
o tiro de misericórdia na cabeça do industrial. A oposição destes dois testemunhos
à pachorra de todos os defensores de Boilesen prova que o tom paródico não é,
em absoluto, uma forçada de barra. Há uma dignidade na derrota que simplesmente
não existe no lado vencedor (e outra das coisas que o filme afirma é que a luta
armada, e a reação militar, não compunham um episódio de confronto interno, mas
de guerra pura e simples – e na guerra há vencedores e vencidos). E os registros
da época – registros audiovisuais em sua maioria, em diálogo direto com o cinema
que se produziu sobre o período – mostram que espalhar o termo “revolução” ao
invés de “ditadura”, ou “terroristas” ao invés de “guerrilheiros” é parte de uma
cegueira histórica voluntária e tácita e que, vistos de perto e 40 anos depois,
guerrilheiros ainda são guerrilheiros, mas torturadores são (e sempre foram) simplesmente
um motivo de vergonha. Com todo esse arsenal que Cidadão Boilesen tão conscientemente
opera, o cinema da malhação-do-Judas parece ser a imagem justa. Julho
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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