in loco - cobertura dos festivais
Vestígio (Chiri), de Naomi Kawase (Japão/França, 2012)
por Juliano Gomes

Vestígios de transcendência

A produção de documentários pessoais de Naomi Kawase desde muito cedo nos mostra a clareza com que a diretora trafega em um terreno extremamente pantanoso onde muitos escorregam feio. Desde Em Seus Braços (1992), a sua orfandade está em foco de maneira pungente, com precisão na representação deste centro ausente que é a imagem dos pais de uma órfã. Vestígio é uma etapa de evidente continuidade deste projeto da diretora, mais um capítulo desta saga íntima. E tal relação com seu conjunto de filmes e com uma certa cartilha de estratégias (que provavelmente atinge seu auge em Tarachime, de 2006) já aponta um discreto esgotamento deste mundo cuidadosamente construído por Kawase nestas duas últimas décadas.

Em Vestígio, temos a personagem principal de sua grande “novela” à beira da morte.  A urgência da situação de sua vó/mãe Uno parece estar relacionada a uma falta de polimento na armação do filme. Independente da reutilização de cenas inteiras de Tarachime, e da repetição do antológico plano dos submersos seios envelhecido, Vestígio oscila entre o sublime e o piegas. Se aproxima deste último quando se vale de estratégias reiterativas de sentido (isto é, de unidade) como a altamente dispensável trilha-sonora, por exemplo. A arma de Kawase contra a banalidade estética sempre foi sua habilidade de conjugar elementos plásticos e dramáticos de forma que este centro ausente, este buraco, fosse um suporte para uma representação de um eu, de um corpo, que é desconexo. A concretude inescapável da situação disparadora de Vestígio parece ter tolhido em alguma medida a capacidade extraordinária que sua obra tem: transcender. Pode-se perceber aqui uma certa resignação que se traduz num leque mais limitado de estratégias desta transcendência a partir de um território criado por ela mesma.

Apesar deste aparente cansaço diante de um mundo onde a morte dá o tom (um mundo de ausências, afinal), sua grande capacidade de síntese e metaforização ainda se revelam efetivas nos pontos altos do filme. O trunfo de seu cinema caseiro sempre foi a expansão do drama e a dissolução dos corpos (via closes, efeitos de luz, duplicações fotográficas), sua concentração advém dessa dupla estratégia. Sua força vem justamente de uma fuga, de um escapar, de uma fagulha que nasce da fricção de elementos dissonantes, como um caule e uma secretária eletrônica, por exemplo. A proximidade da pele de Uno é uma espécie de consubstanciação deste rio de possibilidades de caminhos que todos nós somos. E sua tragédia é sua indiferente aleatoriedade.

O cinema de Kawase vive deste paradoxo da possibilidade de ligação, de comunhão, que só pode acontecer diante de uma situação de extrema solidão. Sua violência na imagem, seu esquartejamento radical dos corpos, cortando todo seu contexto, suas ligações diretas, revelam este desejo de ligação de base, com uma idéia de Todo, de Absoluto, que se materializa nesta busca da abstração, da matéria plástica pura, sem contornos, como os panos iniciais de Vestígio. Há ali uma analogia da textura do vídeo com este estado intermediário de quase existência das coisas, este limiar onde a imagem está quase a se constituir, neste ponto onde a morte dá as mãos a um nascimento.

Nesta síntese, assim como na matéria clara que encerra o filme, Kawase parece apontar um caminho para seu cinema de matéria doméstica. Um caminho que estava lá desde seu primeiros vídeos, que passa um pouco pela idéia de “inventário”. Uma atenção ao mundo mais substantivo, concreto, impessoal talvez. Se a pele é um cosmos, não há nada que a diferencie do resto. Este “vestígio” que o filme busca deixar ver nada mais é do que a condição do mundo material. Nós, as coisas, somos somente um amontoado de caminhos traçados ou ensejados. O papel do artista diante disso é justamente achar a posição, a disposição que revela esta malha. É este o dilema que Kawase parece estar diante agora. Aguardemos cenas do próximos capítulos.

Setembro de 2012

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